Ralf Rangnick indica o caminho

22 de Outubro, 2020 - 5 mins de leitura

Falar de Ralf Rangnick é falar de alguém que marca um antes e um depois em várias vertentes do futebol. Como treinador, foi decisivo em mudar a forma de jogar na Alemanha e, com isso, também a formação de treinadores. Neste particular, formou e inspirou Jurgen Klopp, Thomas Tuchel e Julian Nagelsmann, entre outros. Como dirigente/gestor, emerge como o grande responsável pelo crescimento do projeto da Red Bull, principalmente através do RB Leipzig e do FC Salzburgo, com ideias e inovações que influenciam a formação de futebolistas, formação de treinadores, o scouting e a gestão.

Ou seja, Rangnick é alguém que vale a pena ouvir e ler, que provoca (ou devia provocar) reflexão constante. A entrevista que deu ao ‘El País’ é um dos maiores exemplos recentes disso e deixa várias frases que merecem ser aprofundadas.


“Deves ser fiel ao plano, inclusive em alturas de maus resultados. Por isso, a identidade corporativa é fundamental, e a partir daí construir o comportamento corporativo, que se consegue ao contratar as pessoas certas”.

Qualquer projeto digno desse nome nasce de uma ideia e é essa ideia que vai, depois, influenciar todas as decisões que se seguem. Não podem existir várias ideias. A primeira coisa que Rangnick nos diz é que, para construir algo a médio/longo-prazo, essa ideia tem que ser inegociável, acima de tudo nos maus resultados, que vão aparecer. É aí, nessa fase, quando surgem as dúvidas, que a ideia ganha força e se sustenta porque é aí que aqueles que acreditam realmente no processo e no que se está a fazer se unem mais, com o objetivo de encontrar soluções e resolver os problemas. Mas tão importante quanto isso é alimentar essa ideia constantemente, através de decisões e comportamentos, que vão definir a identidade do projeto (a tal cultura de clube). E a melhor maneira de conseguir isso é ter as pessoas certas, não as melhores, mas as melhores e que têm os mesmo valores e que acreditam nas mesmas coisas.

“Nos (grandes) clubes, ter a responsabilidade de ser treinador e diretor desportivo ao mesmo tempo seria muito difícil”.

Num futebol cada vez mais complexo, mais exigente, com cada vez mais vertentes associadas e mais áreas que merecem atenção, é essencial investir forte na organização e nas pessoas que ajudam os clubes e os jogadores. Por outro lado, Rangnick defende algo que considero decisivo se se quer evoluir e ter bons resultados, dentro e fora do campo, ao ponto de considerar que esse investimento até deve ser prioritário em relação aos jogadores. São as pessoas que não jogam que estão mais envolvidas no projeto, que têm as ideias, as opiniões, as discussões e as convicções; são essa que se mantêm no clube por mais tempo e por isso podem pensar para lá do curto-prazo. Os projetos mais sustentáveis são os que resistem à perda de treinadores e de jogadores importantes e continuam o caminho programado. Mas para isso é preciso investir na estrutura e assim reduzir a dependência de quem joga e de quem treina.

“Apenas deves avaliá-los (aos jogadores) pelas decisões que tomam sob pressão e há que educar os observadores nesse sentido. Os golos e as fintas podem confundir-te”.

Já escrevi como o scouting deve adaptar-se aos novos tempos. Como as observações ao vivo devem servir, preferencialmente, para analisar o jogador do ponto de vista comportamental e não tanto sob o ponto de vista meramente futebolístico. E esta frase de Rangnick vai nesse sentido. Atualmente, ter acesso a jogos nunca foi tão fácil e isso, juntamente com os dados estatísticos faz com que seja relativamente fácil perceber se um jogador passa bem, finta bem, remata bem e corre bem. Difícil é perceber se faz isso sempre ou apenas em determinados momentos. Difícil é perceber se mentalmente tem as qualidades decisivas para chegar ao alto nível. Difícil é perceber se tem os comportamentos adequados, se reage bem aos diferentes momentos, como responde aos períodos mais complicados… Daí, impõe-se repensar o tipo de observadores que fazem mais sentido no futebol de hoje. Que qualidades deve ter quem analisa? Que tipo de formação necessita, em que áreas, e que conhecimentos deve aprofundar que os ajudem a entender melhor aquele que joga e não o jogador?

“Os clubes devem pensar seriamente em como substituir o futebol de rua. Os jovens precisam de mais tempo de treino”.

A formação de jogadores enfrenta grandes desafios e Rangnick toca num dos pontos-chave, talvez até mais do que o regresso do futebol de rua: os jovens, hoje, já não têm tempo para jogar à bola. Têm as consolas, as redes sociais, distrações que nunca mais acabam, e todo esse contexto social não pode ser dissociado do contexto desportivo. Pelo contrário, esse contexto social deve ser tido em conta quando se pensa e constrói o contexto desportivo. Clubes e treinadores devem procurar soluções, mas elas também podem vir dos pais e dos próprios atletas que querem, realmente, apostar numa carreira futebolística. Nunca se treinou tão pouco - e por isso mesmo com tão pouca variedade -, como hoje e isso também tem implicações nos treinos, cada vez mais específicos e com linhas orientadoras que deixam pouco espaço para o treino essencialmente técnico e virado para as individualidades. Como se pode promover e provocar essas alterações? O que os clubes podem fazer para operacionalizar outras formas de treinar? Repensar e ajustar é uma necessidade, sob pena de se estar a formar jogadores iguais.

“O mais importante não é correr rápido, mas pensar rápido. Que sejam capazes de analisar a situação e logo perceberem o que devem fazer. Se isto, acrescentas a mentalidade e o talento da personalidade, tens um grande (jogador)”.

Concordo com Arsène Wenger, quando defende que a próxima revolução no futebol será a neurociência e é algo sobre o qual já venho refletindo e discutindo (como aqui). Como decidir melhor e mais rápido, mas também como tornar os jogadores mais fortes mental e psicologicamente, mas resistentes às adversidades, mais inconformistas e menos acomodados, mas predispostos a enfrentar dificuldades e pouco dados às facilidades. E há todo um mundo por descobrir e por fazer nesse sentido. Não é preciso descurar a formação futebolística, mas acredito que é urgente aprofundar a formação humana e alimentar constantemente a personalidade das pessoas com características que as tornem não só mais competentes a jogar futebol, mas também mais preparados para jogarem futebol ao mais alto nível de exigência competitiva.

“80% dos 200 jogadores participantes nos quartos de final da Liga dos Campeões já jogavam em escalões de adultos quando tinham 17 anos”.

É um dado avassalador, não é? Principalmente, quando estamos em Portugal, um dos países onde os clubes menos apostam na formação, apesar do trabalho na formação ser reconhecidamente um dos melhores a nível mundial. Coisas inexplicáveis à parte, este dado levanta questões importantes, a mais importante talvez esteja relacionada com as etapas associadas à formação do futebolista. Ser precoce não é mau, mas também só é bom quando alguém avançado para a idade é bem enquadrado e inserido nos contextos certos que potenciam o seu crescimento. Ter essa perceção é difícil e essa vontade nem sempre (quase nunca?) existe, já que isso muitas vezes implica hipotecar resultados, vitórias e títulos. Mais importante do que ganhar jogos, é levar os jogadores em formação para patamares de exigência que os obriguem a evoluir e a crescer em vários.

A entrevista de Ralf Rangnick tem muito mais sumo e pontos de interesse. E é tão rica que deve ser lida por gestores, treinadores, formadores, observadores e jogadores.

Vasco Samouco