Quando um jogador faz a coisa certa no momento certo e escolhe a melhor opção entre todas as que tem disponíveis, não o faz por ser tecnicamente evoluído ou por estar em forma fisicamente, fá-lo porque, acima de tudo o resto, pensa bem. E este é o primeiro ponto que me parece importante debater quando se fala deste assunto. A tomada de decisão é uma ação/comportamento muito mais cognitiva do que técnica, talvez até exclusivamente mental, pela significativa razão de que decidir bem ou mal está umbilicalmente ligado com aquilo que o futebolista faz quando está ‘desligado’ do jogo: é nessas alturas que ele pode ver, ler, analisar e perceber aquilo que está acontecer e aconteceu e é essa informação que o vai levar à melhor opção. A tomada de decisão nasce da ação na inação.
Por ser uma ação marcadamente mental, a capacidade para decidir bem tende a melhorar com aquilo que se faz antes da decisão. Quanto mais o futebolista conseguir ver o jogo (o tal andar com a cabeça de um lado para o outro), analisar aquilo que está a acontecer à volta dele, ler o contexto e perceber os comportamentos, mais preparado estará para decidir bem. Acredito que o decidir bem ou mal está intimamente ligado com aquilo que o jogador consegue ver antes da ação e aqui entra outra variante: jogadores diferentes vêem coisas diferentes em situações iguais e é aquele que vê mais e melhor quem tem mais possibilidades de fazer a coisa certa no momento exato.
Parece-me claro, portanto, que não é, pelo menos diretamente, a jogada, o adversário ou um determinado contexto a ditar o sucesso de uma decisão. O que faz a diferença é aquilo que se faz e se percepciona das mais variadas situações e dos comportamentos alheios. Porque ter essa clareza de raciocínio implica outro fator essencial no processo da tomada de decisão: antecipar o que pode (vai) acontecer. Essa agilidade mental é outra grande vantagem que aqueles que decidem melhor (bem e mais rápido) têm em relação aos outros. Ao olhar (para o adversário, para a jogada, etc), conseguem ver para lá do óbvio e depois executam com base nessa informação.
COMO DECIDIR MELHOR?
Um dos aspetos que mais me intriga quando penso neste assunto é o facto de os jogadores evoluírem muito pouco na tomada de decisão, com a curiosidade adicional de que os que melhoram mais são os que já decidem normalmente bem. Se isto até acaba por ser lógico, porque estes já têm incutidos os comportamentos que levam à boa decisão, pelo contrário é interessante perceber que quem, por regra, decide mal, dificilmente consegue tornar-se num futebolista com boa tomada de decisão e mais criativo nesse momento. Porquê? Como considero que não se trata de algo inato, mas sim de algo que é treinável, encontro uma resposta possível na convicção de que esse aspeto é muito mais difícil de exercitar e de operacionalizar por parte de quem treina e de interiorizar por parte de quem é treinado. Sim, é a jogar que se tomam mais decisões e isso, teoricamente, ajudará a melhorar a tomada de decisão, mas se o jogador não tiver a capacidade de analisar e perceber o que fez mal, passará a decidir bem mais vezes? Sem conhecimento do jogo nada feito. Jogar ajuda, mas não chega.
Decidir bem sucede ao momento de ver a coisa certa, logo ensinar a ver é fundamental. É preciso tornar os jogadores conscientes daquilo que vêem (e podem ver) e impedir que se limitem, simplesmente, a olhar, qual ato involuntário, inconsciente e vazio. Como se consegue isso é que é mais complexo, muito menos óbvio e que pode dar origem a várias abordagens. Doug Lemov, neste ensaio interessantíssimo, defende que uma das melhores maneiras para melhorar esse aspeto é através do questionamento. Fazer perguntas aos futebolistas (o que é que viste? Porque tomaste esta decisão?) e, mediante as respostas, alertar para outras alternativas ou voltar a perguntar se não há mais e melhores opções disponíveis, promove a discussão, torna os jogadores mais analíticos, mais atentos e abre horizontes. No fundo, serve para tornar a arte de olhar algo objetivo e consciente e evitar que seja algo abstrato e que se faz só porque é natural. Isto, claro, exige mais do treinador, quer ao nível do conhecimento quer nas formas de interação com os jogadores. Numa estratégia também eficaz, mas menos pedagógica e menos produtiva a longo-prazo, o treinador pode, simplesmente, mostrar ao jogador o que ele deve ver.
Outra abordagem que me despertou interesse por ser algo que vai (para já) contra o que defendo, vem do Nordsjaelland, o clube dinamarquês que se destaca na formação de jogadores. Baseando-se com vários estudos que comprovam que muitas das decisões que tomamos no dia a dia se explicam com as opções que temos à disposição e que quanto maior for o leque de opções mais difícil é decidir e consequentemente decidir bem, o Nordsjaelland acredita que tornar os jogadores mais fortes na tomada de decisão passa por “reduzir a complexidade do jogo e apenas treinar as situações mais importantes”. “Jogar futebol é tomar decisões constantemente e quantas mais opções existirem em cada situação mais tempo se demora a decidir. Por isso, diminuímos as opções aos jogadores para eles decidirem melhor e mais rápido”. Teoricamente, faz sentido.
A TÉCNICA COMO ALIADA
Outra variante importante ter em conta é que, com bola, são os jogadores mais evoluídos tecnicamente que decidem melhor. É uma tendência, um facto, e não é por acaso. A qualidade técnica pode realmente influenciar a qualidade da decisão e é também por isso que defendo que desenvolver os futebolistas tecnicamente é fundamental para fazer deles melhores, mais completos e mais inteligentes. (Um aparte: na formação é muito importante que os treinadores julguem intenções em vez de ações. É a intenção, e não a execução, que define a inteligência e o conhecimento do jogador e o torna mais ou menos promissor para o futuro. Deve-se olhar para o jogador em formação como aquilo que pode ser e não como aquilo que é.)
Vejamos: quem sabe executar receções orientadas, não ganha tempo e espaço e por isso não tem mais probabilidades de decidir melhor? Pelo contrário, se um jogador não é capaz de fazer um passe longo, vai pensar em fazê-lo? Não, logo mesmo que esse passe seja a melhor solução para determinado momento, ele dificilmente acontecerá pela razão de que o jogador ‘não vê’ essa hipótese. E quem têm à vontade (qualidade) para jogar pressionado, livrar-se-á da bola de qualquer maneira ou tenderá a pensar numa alternativa melhor? Um central com capacidade de drible tira partido disso e desequilibra porque essa qualidade fá-lo ver outras oportunidades. Quantos mais argumentos técnicos, mais coisas serão capazes de fazer e mais coisas serão capazes de imaginar.
Claro, decidir bem sem bola é mais fácil do que decidir bem com bola e decidir bem com bola mas parado é mais fácil do que decidir bem com bola em corrida. O mais importante, contudo, é que decidir bem é, primeiro que tudo, uma ação mental, que se executa técnica e fisicamente após uma série de exercícios de perceção e de cognição (ver, analisar, memorizar, perceber e criar informação útil), mas isso não deve ser uma limitação na altura de tornar os futebolistas mais dotados mentalmente. Ao contrário do que se pensou durante muito tempo, também o cérebro evolui e se molda com informação, experiências e conhecimento. Trabalhar esse músculo está no caminho para formar jogadores capazes de decidir bem na maior parte das vezes.
IDEIAS-CHAVE
- A tomada de decisão é baseada em analisar, ver, ler e perceber aquilo que está acontecer e aconteceu. Nasce da ação na inação
- Para decidir bem é preciso ver bem
- Jogadores diferentes vêem coisas diferentes em situações iguais. Aquele que vê mais e melhor tem mais possibilidades de fazer a coisa certa no momento exato
- Se o jogador não tiver a capacidade de analisar e perceber o que fez mal, como vai decidir bem mais vezes, mesmo que jogue muitas vezes?
- A tomada de decisão só é melhorada com trabalho a nível cognitivo
- A técnica ajuda a potenciar a tomada de decisão. Quanto mais um jogador conseguir fazer com a bola, mais tendência tem para encontrar soluções