A evolução do jogador por fases e por espaço

26 de Março, 2020 - 6 mins de leitura

Mais coisa menos coisa, a formação de um jogador de futebol dura 12 anos (dos 6 aos 18). Apanha crianças, adolescentes e adultos precoces, que exigem atenções, cuidados e abordagens diferentes não só do ponto de vista pessoal e humano (como explico aqui), mas também do ponto de vista puramente futebolístico. Entendo que a formação do futebolista deve focar-se essencialmente em quatro pontos e defendo, acima de tudo, que essas áreas – a técnica, o conhecimento do jogo, a cultura tática e o físico – devem merecer máxima prioridade e atenção em etapas separadas e em diferentes idades. Para além disso, devem também ser enquadradas em espaços (de jogo) adequados, sempre do mais pequeno para o maior. Em que fase os jogadores são mais treináveis? Em que alturas estão mais disponíveis para ouvir, perceber e assimilar? Em que idades precisam de ter mais contacto com a bola? A partir de quando se lhes deve limitar a liberdade para jogarem à vontade e incutir-lhes conceitos novos e mais complexos? Quando é que o físico passa a ser um aliado e fica mais preparado para evoluir e quando é que esse trabalho deve ser inserido? Estas e outras questões devem ser o ponto de partida na altura de determinar os tipos de abordagens exigidas aos treinadores quando lidam, treinam e trabalham o jogador.

Tendo isto em conta, considero que a técnica individual deve ser prioritária na fase inicial da formação. Seguindo-se o conhecimento do jogo, depois a cultura tática e, por fim, o físico, sendo que nenhum destes aspetos se pode perder pelo caminho. Pelo contrário deve ser sempre integrado nos passos seguintes. Claro que há razões lógicas por detrás desta lista. Quando começam, os miúdos devem jogar o mais possível sem amarras, com liberdade, sem grande feedback e constrangimentos impostos. Devem tocar na bola constantemente e alimentar essa relação regularmente. E é nessas fases, sem (espera-se) a pressão dos resultados, que fica mais fácil promover estes contextos. Por outro lado, é no início que a paixão pelo jogo é alimentada decisivamente, e a melhor maneira que conheço para fazer isso é através da bola. Nos primeiros passos, deve predominar o que chamo de conhecimento complementar, aquele que cada um adquire quase sem querer, sem que nada lhe seja transmitido, mas como resultado de experiências.

Depois, o jogador vai crescendo. Fisicamente, mas, acima de tudo, mentalmente. Tem 10, 11 ou 12 anos e um nível de compreensão e de perceção maiores – começa a ter capacidade para ver outras coisas e percebê-las. O jogo expande-se. Deixa de ser só a bola e passa também a ser os colegas, os adversários, o espaço. A cabeça levanta-se e esse pormenor abre todo um mundo novo. Os conselhos começam a ser acatados, a informação transmitida já não morre à nascença. Isto é o conhecimento do jogo a desenvolver-se, antes de se começar a ir mais a fundo com o terceiro ponto, a tática, o jogar em 4x4x2, em 4x3x3 ou em 3x5x2 e as diferentes implicações que esses, e outros, sistemas têm. Para as perceber bem, no entanto, o conhecimento é fundamental, por isso vem primeiro. Apesar de estarem interligados, conhecimento de jogo e cultura tática são coisas diferentes, embora complementares: quanto maior o conhecimento, mais facilmente a tática e a estratégia são compreendidas.

Coloco o físico em último lugar por três razões em especial. Primeiro porque o considero, entre os quatro, o fator menos relevante na qualidade de um jogador. Depois porque, se for trabalhado e promovido desde muito cedo, essa vantagem física vai facilitar a vida ao jogador em formação quando o que se quer é criar-lhe dificuldades. Daí que fazê-lo a partir dos 16 anos parece-me muito mais lógico. E por último porque o físico é, de todos, o aspeto mais fácil de trabalhar e cuja evolução mais rapidamente se nota: no espaço de meses, as diferenças são notórias.

DO FUTSAL AO… FUNIÑO

Ora, como se podem trabalhar e desenvolver da melhor maneira a técnica, o conhecimento, a tática e o físico? Para mim, parte importante da resposta está no… espaço. Quanto menos espaço, mais vezes se toca na bola, logo a técnica é aprimorada, e neste sentido, como no início o fundamental é a relação com bola, há muito que entendo que o futsal deve ser obrigatório na formação. Aí, em todos os jogos todos jogadores têm que finalizar, driblar e passar, mas também evitar o drible e dificultar o passe, o que também os ajuda a perceber como podem passar e driblar mais eficazmente. Experimentam situações de superioridade e de inferioridade numérica quer a atacar quer a defender. Como o jogo é muito dinâmico, têm que tomar decisões constantemente, principalmente com bola. Não é por acaso que praticamente todos os futsalistas são tecnicamente competentes: é porque são obrigados a sê-lo.

Implementar o futsal nas idades mais precoces contribuirá decisivamente para a evolução técnica e não só, mas há um jogo que leva ainda mais ao extremo praticamente tudo o que o futsal tem para oferecer. O Funiño saiu da cabeça de Horst Wein, considerado uma das mentes mais brilhantes do futebol alemão, e volta a estar na moda na Alemanha porque “aumenta a alegria de todas as crianças que jogam” mas principalmente porque “aumenta as probabilidades de mais talentos individuais chegarem ao topo”. Basicamente, é um jogo de três contra três, com mini-balizas, sem foras de jogo, nem cantos e lançamentos, que promove as situações de 1x1 e provoca mais toques na bola por parte de quem joga. Sublinhando o que defendo, é mais destinado a crianças com idades entre os 5 e os 9 anos (mas não deve ficar por aí, como é natural) e o objetivo é claro: aumentar a técnica individual e tornar os jogadores mais criativos. Tudo, portanto, o que é fundamental trabalhar no início da formação.

É TUDO UMA QUESTÃO DE ESPAÇO

Aumentar o espaço de jogo é o passo seguinte porque essa mudança exige mais dos futebolistas. A bola deixa de ser tudo. O conhecimento e a cultura tática aprofundam-se quando há mais espaço para jogar porque o jogo fica mais complexo à medida que o espaço aumenta. Mais espaço implica mais colegas, mais adversários, mais interações, muito menos tempo com a bola, logo mais coisas para analisar. É o aumento do espaço que torna o jogo mais complexo. Por isso, este choque espacial deve ser feito com cuidado e paulatinamente para o mudança ser menos sentida e para a informação ser transmitida e compreendida aos poucos e não bruscamente. Acredito, por isso, que o futebol de 7 deve ser o jogo seguinte a jogar, antes de se avançar, por fim, para o futebol de 11. Ou faz sentido ter jogadores de 11 ou 12 anos a jogarem em campos iguais aos melhores jogadores do Mundo?

Mais espaço exige jogadores melhor preparados fisicamente, pelo que tornar o campo maior também é importante para a evolução física. A partir dos 18 anos, a idade passa apenas a ser um pormenor, já que o futebolista começa a competir contra outros mais velhos, mais experientes, mais robustos, mais espertos. Ao contrário do que acontece no processo formativo, agora as diferenças aumentam consideravelmente e ter capacidade para aguentar os choques, para disputar bolas divididas, para pressionar, para reagir, para correr distâncias maiores, a ritmos superiores e aguentar jogos muito mais intensos também ganha importância.

Tal como a teoria da seleção natural de Charles Darwin, também no futebol há uma seleção natural. São os mais preparados, aqueles que conciliam melhor a qualidade técnica, o conhecimento de jogo, a cultura tática e o físico que têm mais hipóteses de resistir e chegar a um nível alto. Por isso, dar muita importância a cada uma delas, por etapas, e ir conciliando-as paulatinamente me parece tão decisivo.

IDEIAS-CHAVE

  • A criação do futebolista deve obedecer a um conjunto de etapas e focar diferentes prioridades conforme as idades
  • À medida que fica mais velho, o jogador fica com níveis de compreensão e de perceção maiores. O jogo expande-se
  • O físico é, de todos, o aspeto mais fácil de trabalhar e que mais rapidamente se nota: no espaço de meses, as diferenças são evidentes.
  • O espaço (de jogo) é que vai determinar o que se deve treinar com mais incidência
  • Na fase inicial, o futsal é essencial porque permite muito contacto com a bola e expõe o jogador a diversos contextos de jogo
  • O conhecimento e a cultura tática aprofundam-se quando há mais espaço para jogar: o jogo fica mais complexo à medida que o espaço aumenta
  • O futebol de 7 deve ser o jogo seguinte ao futsal. Só depois, os futebolistas devem avançar para o futebol de 11
  • A partir dos 18 anos, a idade passa a ser um pormenor, já que o futebolista passa a competir contra outros mais velhos, mais experientes, mais robustos, mais espertos. Aí sim, o físico ganha (alguma) relevância

Vasco Samouco