As equipas do pós-coronavírus

09 de Abril, 2020 - 3 mins de leitura

O futebol é muito coisa e também é um jogo de afetos. São os afetos que criam e alimentam as relações pessoais e são os relacionamentos que, muitas vezes, fazem das equipas mais ou menos do que aquilo que podem ser. O que se passa no balneário, longe do relvado e para além do jogo também é decisivo para conseguir bons resultados. Os convívios, os jantares, as brincadeiras, os cumprimentos, os pequenos-almoços em conjunto, os abraços de alegria mas também de conforto… É assim que uma equipa se une, se respeita, se sustenta e se prepara. Mas agora dizem-nos para evitar o contacto social, para não nos tocarmos, para ficarmos em casa, sob pena de colocarmos em risco a nossa saúde, a de quem nos é mais próximo e a dos outros. O que está em causa são comportamentos a que estávamos tão habituados e que devem mudar. E se os comportamentos mudam, então os relacionamentos dificilmente serão os mesmos e as dinâmicas de grupo como as conhecemos ficam ameaçadas.

As consequências da pandemia da Covid-19 são previsíveis porque vão acontecer, mas imprevisíveis na sua dimensão e na sua abrangência. Muita coisa vai mudar, umas para sempre, outras serão apenas temporárias.

De há um mês a esta parte, não ficamos só sem futebol, sem o jogo. A componente social também desapareceu, de forma drástica, assustadora quase, ao ponto de alguns danos se adivinharem irreversíveis. Os grupos de trabalho passaram a sustentar-se sem vínculos emocionais e nesse sentido tornam-se mais frágeis à medida que o tempo de afastamento se prolonga. Por isso, e quando se fala muito dos cuidados físicos a ter nesta altura, é o lado emocional, após este isolamento, que me faz pensar. Vivemos um período tão estranho que manter a saúde psicológica, por si só, me parece pouco. Esta crise pode mudar-nos e, quando ela passar, a questão não será como estarão, mas sim COMO SERÃO os futebolistas vindos do distanciamento, do isolamento prolongado, do medo e com a mente cheia de conselhos reiterados para não tocarem em ninguém. Voltarão iguais ao que eram? Manterão os mesmos comportamentos? Terão logo as afinidades de antes, sabendo que tocar noutro pode significar contrair uma doença grave e levá-la para casa? Ou, pelo contrário, serão muito mais cuidadosos no contacto pessoal? O ‘estar’ é passageiro, o ‘ser’ é prolongando, embora não imutável, e implica cuidados redobrados e exige outras respostas.

Não é novidade: o lado humano é essencial no futebol (no desporto, na vida), só que para o potencializar os afetos são indispensáveis. Ou têm sido até aqui. São os abraços e os apertos de mão que consolidam as relações pessoais. Sem eles, construir um bom grupo de trabalho é muito mais difícil. Ora, e porque o que aí vem é imprevisível neste aspeto, a eventual redução (inexistência?) destes afetos tem que ser equacionada. É que, a acontecer, implicará mudanças significativas nos comportamentos individuais e isso exigirá diferentes abordagens de quem lidera porque as dinâmicas de grupo serão afetadas. Daqui podem resultar relações muito mais frias e distantes: mais-valias como a entre-ajuda, o pensar nos outros, o colocar o grupo em primeiro lugar ficam ameaçadas. Ganhar jogos por aquilo que as equipas são fora do campo será mais difícil.

Neste sentido, também o trabalho do treinador pode ser beliscado e exigir adaptações. Não só porque teria outras preocupações com a gestão da equipa, mas também porque esta possível mudança o limitaria na ligação treinador-jogador, condenada a tornar-se muito mais impessoal e quase sem laços emocionais, e dificilmente não teria consequências no desempenho da equipa. Como minimizar esses danos? O que pode fazer para não perder esse vínculo pessoal? O que pode estar em causa não é um pormenor, atenção. É uma mudança comportamental drástica e, acima de tudo, inédita e que por isso dificilmente também não teria consequências imprevisíveis no campo. Como será um jogo com laços emocionais muito mais frágeis? Igual não será. E motivará mudanças de abordagens a todos os níveis? Quase de certeza.

Falo em cenários possíveis, não em certezas, porque, como já referi, essas não existem. Daí que, com todas as dúvidas a remoer, mais os danos imprevisíveis da crise a todos os níveis, parece-me indispensável os clubes terem a preocupação de atenuarem ao máximo as consequências, principalmente as emocionais e comportamentais, até porque essas são mais imprevisíveis e mais complicadas de lidar e resolver do que as físicas.

Vasco Samouco