(R)evolucionar a formação de futebolistas

06 de Fevereiro, 2020 - 4 mins de leitura

As coisas evoluem e o futebol também. O que hoje é dado como verdade absoluta, amanhã talvez não seja. Eu, por exemplo, também já defendi que definir um sistema de jogo comum a todos os escalões é o melhor, que jogar em 4x3x3 (ou outro qualquer) dos sub-12 até equipa principal é o que faz sentido. Mas já não. Agora, pelo contrário, considero que isso é o pior para os jogadores, para os treinadores e até para os clubes. E à boleia disto vem outra convicção cada vez mais forte: jogar sempre na mesma posição durante o período formativo também deixou de fazer sentido.

Atualmente, os guarda-redes têm de saber jogar com os pés (já há treinadores que os colocam quase no meio-campo em organização ofensiva), os centrais também devem ser construtores de jogo porque é naquela zona do campo onde há mais espaço, os laterais são muitas vezes extremos ou interiores, os extremos têm que saber jogar por dentro, quais médios, os avançados são os primeiros defesas e ainda têm que saber associar-se em espaços curtos e movimentar-se na profundidade. As equipas defendem numa estrutura tática e atacam noutra, muitas variam o sistema de jogo para jogo e até durante o mesmo jogo. Resumindo: o futebol é cada vez mais dinâmico, logo mais complexo, e precisa (vai precisar) de futebolistas mais versáteis, mais completos, mais inteligentes, mais perspicazes, mais conhecedores.

Ora, não é a jogar (quase) sempre no mesmo sistema tático e na mesma posição durante dez anos (normalmente, o tempo que um miúdo está nos escalões de formação) que os jogadores ficam melhor preparados para o futebol do futuro. Estar constantemente no mesmo papel e integrado no contexto de sempre não potencia eventuais qualidades que possam ter e que estão escondidas pelo “modelo”, por exemplo. Mas, principalmente, não lhes dá estímulos diferentes, não os obriga a fazer outras coisas, a pensar mais e mais rápido, a refletir, a errar, a interiorizar outros comportamentos dependendo da situação, não os põe a pensar de outra maneira, a tomar mais decisões, a pesar diferentes opções, não lhes melhora a tomada de decisão. Basicamente, essa realidade (a atual) não lhes acrescenta atributos que se juntarão aos que eles já têm e, consequentemente, não fará deles futebolistas mais capazes em mais momentos do jogo. Claro, há jogadores mais talhados para uma posição do que para outra – o objetivo principal não é que eles mudem de lugar – e é nessas que devem passar mais tempo a treinar e a jogar, mas isso não os deve limitar. Desempenhar outras funções não significa perderem as qualidades que já têm, mas sim acrescentar-lhes outras que os tornarão mais completos. Que os tornarão futebolistas, simplesmente. A formação deve servir para tirar conforto aos jogadores, deve expô-los ao maior número de situações possíveis, até para, quando chegarem a profissionais, eles já tenham incutida a predisposição para responder a qualquer contexto diferente.

Como o jogo está mais rápido, é necessário ter jogadores mais rápidos mentalmente e uma das maneiras de promover essa evolução fundamental é precisamente a versatilidade posicional, que os obrigará a saber como pensar e agir quando estão em diferentes zonas do campo, com mais ou menos espaço. É preciso levar os futebolistas para terrenos onde não se sintam (muito) confortáveis, onde sejam obrigados a pensar mais, melhor, de diferentes maneiras e mais rápido. Passar pelo meio-campo, jogar a médio várias vezes, devia ser obrigatório na formação. Acredito que o futebol vai avançar para jogadores sem posições definidas. Vão, isso sim, ser polivalentes a sério e não adaptados. O futebol atual exige que todos os futebolistas, em qualquer posição, consigam fazer cada vez mais coisas. Dizer que o jogador X só consegue jogar no sistema Y vai deixar de fazer sentido (e não faz sentido, se pensarmos bem). Esses futebolistas tendem a ficar para trás.

Do ponto de vista dos treinadores e dos clubes, os constrangimentos mantêm-se. Os treinadores ficam sem margem de manobra para inovar, experimentar, criar e isso, no fundo, também é estagnar-lhes a formação e a evolução. Quanto aos clubes, ficam, desde logo, limitados na escolha de treinadores, acomodam-se, têm mais dificuldades em ser criativos e em procurar evoluir constantemente, porque estão presos a um sistema, e ainda ficam com menos opções no mercado porque “precisam de jogadores para aquela tática”. Mas não é o sistema que é importante, a ideia e a filosofia é que devem orientar as decisões.

Os clubes formam para os outros

Outro aspeto relevante para esta discussão é que quase todos os jogadores que todos os clubes formam, depois fazem carreira profissional… noutras equipas. E embora seja perfeitamente aceitável que a preocupação principal de cada organização seja criar futebolistas para a respetiva equipa principal, por outro lado não deve ignorar-se que são muito poucos os que atingirão esse objetivo. Daí a importância de preparar os jovens para serem competentes em vários contextos, para terem argumentos técnicos, táticos, físicos e mentais que os tornem importantes noutras realidades. A prioridade (obrigação?) dos clubes deve ser formar o melhor possível os jogadores que têm. Têm a responsabilidade de os preparar o melhor possível para a carreira de futebolista, mesmo sabendo que muitos deles não a terão. E isso não se faz limitando-os.

Nunca como agora se disse tanto e tantas vezes que determinado treinador “não tem jogadores para jogar de determinada maneira” e isso já é um sintoma de que é preciso mudar alguma coisa. A começar pela base.


IDEIAS-CHAVE

  • Se o jogo é cada vez mais dinâmico, então precisa de futebolistas versáteis
  • O jogo é mais rápido, logo precisa de jogadores mais rápidos… mentalmente
  • Passar por outras posições não significa perder os melhores atributos que já têm, mas sim acrescentar outros
  • Estar sempre no mesmo contexto não potencia eventuais qualidades que possam estar escondidas pelo “modelo”
  • Todos os clubes formam jogadores para outros clubes
  • A formação deve tirar conforto aos jogadores, deve expô-los ao maior número de situações possíveis
  • Se agarrados a um sistema, também os treinadores da formação não evoluem como devem

Vasco Samouco