Manuel Sérgio: “Quem só sabe de futebol, de futebol nada sabe.”
Mal acabei de ver a série ‘The Playbook’, um pensamento emergiu quase imediatamente: qualquer um daqueles cinco treinadores/as seria bom e competente se se dedicasse a outra modalidade, fosse ela qual fosse. Doc Rivers seria um bom treinador de futebol, tal como Jill Ellis seria uma boa treinadora de basquetebol e Patrick Mourataglou seria um bom treinador de, sei lá, andebol. Porquê? Porque o que torna os treinadores bons, o que define os melhores, não é o conhecimento que têm do desporto a que se dedicam, mas sim todo um conjunto de qualidades, vivências, experiências e características pessoais que vão para lá do jogo e do treino.
O que faz de alguém um bom treinador? É uma pergunta com muitas respostas, todas elas mais ou menos lógicas, nenhuma delas 100% indiscutível e aceite como verdade absoluta. Ainda bem. Para mim, contudo, tudo está relacionado com um aspeto: todos os treinadores, independentemente das modalidades, têm, ou deviam ter, como objetivo principal ajudar os atletas a evoluir, desportivamente e não só, e ajudá-los a competir no máximo das suas capacidades, para, com isso, ganharem mais vezes do que perdem e atingirem metas coletivas. Depois, indo mais ao pormenor, as formas que usam para o conseguirem podem variar, e variam, como a série mostra. Então, ser um bom treinador talvez seja, muito resumidamente, contribuir para o desenvolvimento dos atletas, não? (Um aparte: uma das regras de Mourinho é “treina a equipa e não os jogadores”, mas como se faz evoluir a equipa sem melhorar/treinar os jogadores?)
Ora, um treinador só consegue ajudar os atletas quando os influencia, quando os inspira (tal como Jorge Araújo defende), quando lhes dá informações úteis (e estas podem estar relacionadas com a atividade que praticam, ou não – há muita coisa útil para os atletas fora do campo, das piscinas ou dos pavilhões), capazes de melhorar o rendimento desportivo. Por isso é que os bons, os melhores, treinadores/as têm que ser e são muitas coisas. São pai ou mãe, são confidentes, têm que ser gestores, são líderes, são exemplos e referências de comportamento, são comunicadores, etc. E, talvez, tenham que ser todas estas coisas mais vezes do que, simplesmente, a pessoa que sabe muito do jogo e que dá bons treinos. Se forem tudo isto em bom, então o êxito, seja qual for a definição que lhe dêem, dificilmente não acontece.
Claro que o conhecimento da modalidade em que trabalham é importante, calma. Ninguém pode ser treinador do que quer que seja se não souber do jogo que tem que jogar e para o qual tem que treinar, logo ninguém é treinador do que quer que seja sem conhecimento. Mas, e o ponto é este, ninguém é um bom treinador só com conhecimento. Ou seja, acredito que o conhecimento não é tão ou mais importante que tudo o resto. Porque ele, por si só, não torna os treinadores mais preparados para liderar, gerir equipas e lidar com pessoas.
Ainda para mais no contexto atual em que o conhecimento nunca foi tão grande, tão vasto e tão profundo e nunca esteve tão acessível e disponível para consulta. E o paradoxo é que por essas mesmas razões é que o conhecimento nunca foi tão insignificante e tão pouco decisivo: a um nível alto, onde os melhores competem, todos têm um conhecimento enorme, logo é mais difícil que seja o conhecimento a garantir melhores resultados. O conhecimento já não chega para tornar os treinadores mais fiáveis, mais inspiradores ou referências para os atletas, e é pouco para explicar por que se escolhe o treinador X em vez do treinador Y.
Voltando à série ‘The Playbook’. É notório que os treinadores e as treinadoras consultados(as) sabem o que faz a diferença para se ter bons resultados, para haver evolução e conquistar objetivos. A mentalidade, o saber reagir aos bons e aos maus períodos/resultados, a predisposição para se superarem consecutivamente, a avaliação a tudo o que fazem, o aprender com os erros, a capacidade de discernirem diferentes momentos, a comunicação, a linguagem usada, a importância da relação treinador-atleta, os vínculos emocionais, o aproveitamento de experiências pessoais para melhorarem competências… tudo isto é evidente nos testemunhos de Doc Rivers, José Mourinho, Jill Ellis, Patrick Mourataglou e Dawn Staley.
O meu ponto é: todos os bons treinadores, independentemente da modalidade em que trabalham, partilham qualidades e têm características em comum. Por isso, se quisessem, seriam na mesma bem-sucedidos noutro desporto. Porque o mais importante, o mais complexo, o que exige mais atenção e mais cuidado, já eles têm.
Os melhores treinadores não são os que têm mais conhecimento da respetiva modalidade, tal como os melhores professores não são os que sabem mais da disciplina que lecionam nem os melhores gestores são os que têm melhores notas em cursos de gestão, nem os melhores médicos são os que sabem mais da medicina propriamente dita. Isso é apenas uma parte de um todo muito mais complexo e cada vez mais exigente a outros níveis.
Neste texto defendi como os treinadores do futuro no futebol podem vir de outras áreas e atividades. Se calhar, até podem vir de outras modalidades. Se forem bons líderes, bons gestores, bons comunicadores, boas pessoas e bons exemplos, dificilmente não farão a diferença.