Entrevista #9: Julián Genoud | A Google aplicada ao futebol, 'segredos' do Athletic Bilbao e a formação cognitiva dos jovens

18 de Março, 2021 - 5 mins de leitura

Julián Genoud é natural da Argentina, mas tem a vida dividida entre os Estados Unidos, Espanha e Alemanha, sempre levado pela vontade e pela necessidade de experimentar e viver novas experiências, e refletir, repensar e aprender sobre futebol. É treinador e analista, tem um ‘master’ em Deteção e Desenvolvimento de Talento, escreveu dois documentos sobre gestão e formação no futebol (AFA 360 e Mínimo Modelo Cantera), alimenta um site há vários anos, trabalhou na Google e em Silicon Valley, estudou de perto vários clubes e vários treinadores; acredita que “os humanos dividiram a realidade em disciplinas para poder compreendê-la um pouco melhor, mas que, talvez, estejamos a falar sempre do mesmo”.

Nesta conversa, o Julián disseca tudo o que já viveu. Fala sobre como a cultura da Google pode ajudar clubes e equipas de futebol, realça a necessidade de promover o erro para aprender a lidar com o mesmo, defende as vantagens de trazer outras áreas e outras pessoas para o futebol (“a magia acontece nas diferenças”), expõe ideias sobre como melhorar a formação dos jovens (jogadores), explica por que se surpreendeu com as metodologias do AZ Alkmaar e do Athletic Bilbao e alerta para os perigos que uma sociedade com um grande défice de atenção pode significar nos futebolistas do futuro.

🗣 “Gosto de muitas coisas, sou muito curioso, e tudo o que vou aprendendo acaba por, de alguma maneira, mudar a minha forma de pensar. Portanto, todas as experiências que já tive mudaram muito as minhas ideias em relação ao futebol”.

A entrevista completa está disponível no YouTube.

E agora também pode ouvir as conversas através do podcast Efeito Borboletra, disponível em todas as plataformas.

Em baixo, deixo-lhe algumas passagens da conversa.


A GOOGLE NO… FUTEBOL

“Sempre nos perguntamos por que a Google tem tanto êxito e eu acho que a explicação tem a ver com criar um ambiente de trabalho no qual qualquer membro não tenha medo de tentar e de procurar soluções. Por exemplo, no basquetebol há muitos pontos, logo há muitos êxitos; mas no futebol, normalmente, os jogos acabam 1-0, 2-1, 0-0, ou seja, há muitos fracassos, então é super-importante que um jogador saiba que pode tentar fazer coisas e que errar não é um problema. O ambiente que se vive nas equipas e nas organizações tem um efeito multiplicador no rendimento (das pessoas e das equipas)”.

“Quando eu estive na Google, quem se sentava ao meu lado era alguém que estudava Filosofia e Letras. Tivemos que fazer os mesmos trabalhos e acredito que nos ajudávamos mutuamente pelo facto de estudarmos coisas diferentes e de termos visões diferentes das coisas. A magia acontecia por causa dessas diferenças e acredito que no futebol isso também é possível. O Desporto começa a perceber que é importante ter pessoas de outras áreas”.

“De alguma maneira, os humanos dividiram a realidade em disciplinas para poder compreendê-la um pouco melhor e, embora nunca chegaremos a compreendê-la totalmente, é certo que com essa divisão se perdem certas coisas. É por isso é que gosto de estudar e de conhecer outras coisas porque acredito que é tudo parte da mesma realidade. Simplesmente, fizemos um corte e decidimos chamar a isto psicologia e a isto desporto, mas, talvez, estejamos a falar sempre do mesmo”.

TALENTO E DESENVOLVIMENTO DO TALENTO

“Na Argentina, 98% dos jovens jogadores não chegam a profissionais, por isso é tão importante dar-lhes ferramentas ao longo da formação para que sejam capazes de fazerem outras coisas na vida. Escrevi o ‘AFA 360’ a pensar nesse problema. Na Argentina, a maioria dos jogadores jovens são de classe baixa e nem sequer têm a oportunidade de escolher entre os estudos e o futebol. Isso é triste e para mim devia ter máxima prioridade”.

“Estou convencido de que, durante o processo formativo, ter a possibilidade de viver mais experiências e ter a oportunidade de refletir sobre o que se está a passar, mesmo que não seja um processo consciente, ajuda muito. Em geral, um cérebro mais desenvolvido, ainda que fora do campo e fora do futebol, ajuda os futebolistas no jogo e na vida”.

OS EXEMPLOS AZ ALKMAAR E ATHLETIC BILBAO

“Dos clubes que visitei, o que mais me surpreendeu foi o AZ Alkmaar. Mesmo com menos recursos do que os maiores clubes da Holanda, usa as limitações para pensar soluções criativas para tentar ser melhor do que a concorrência. Destaco o uso da ‘Data’ na tomada de decisões, têm muito claro onde querem chegar e têm uma definição muito concreta do que é o talento, o que faz com que, quando procuram jogadores, saibam perfeitamente o que querem; e usam uma coisa chamada ‘Desenvolvimento Pessoal’, que, basicamente, serve para definir, diretamente com os jogadores, um plano individual para que cada um decida o que gostaria de aprender nos seis meses seguintes. Isso desperta a motivação intrínseca a cada jovem e parece-me algo muito poderoso”.

“Como joga só com bascos, o Athletic Bilbao é um clube muito limitado em termos de recrutamento e, no entanto, consegue competir sempre ao mais alto-nível. Então, têm que existir razões por detrás desse êxito. A coisa que mais me ficou de lá foi o trabalho de uma psicóloga (Maria Ruiz de Oña). A diferença em relação a outros clubes é que ela não trabalhava com os jogadores, mas com os treinadores, baseando-se no conceito de que para criar um bom ambiente e desenvolver um clube é importante identificar as pessoas que podem ter uma influência multiplicadora e os treinadores, por trabalharem com tantos jogadores, são um exemplo claro disso. A ideia é formar os formadores e dar-lhes as ferramentas para solucionarem os problemas dos jovens e das equipas”.

“Outra coisa que me pareceu fascinante (no Athletic Bilbao) é que, antes dos treinos, cada equipa fecha-se nos balneários para que lhes expliquem o treino que vão ter e pedem aos jovens jogadores que apresentem soluções para alguns problemas. Não importa se acertam ou não, o que interessa é que esse desafio vai estimulá-los e vai servir para os jogadores desenvolverem essa capacidade de pensamento, de reflexão e de procura constante de soluções, que depois até lhes serve para a vida. Dá-lhes confiança para encararem os problemas”.

O FUTEBOL DO FUTURO

“Hoje, todos temos uma capacidade de atenção muito pequena e acho que isso pode ter um grande impacto. A maneira como as pessoas, agora, consumem o futebol pode levar a mudanças nas próprias regras do jogo ou no próprio tempo de jogo, com quatro partes de 10 minutos, por exemplo, que resultariam em jogos mais curtos, mas muito mais intensos”.

“A capacidade reduzida de atenção que temos agora também pode mudar os jogadores do futuro. Antes, o Riquelme via todos os jogos e falava constantemente sobre futebol; hoje, os jogadores jogam playstation ou nem isso. E esse facto pode ter implicações muito importantes, possivelmente negativas, na compreensão do jogo”.

Vasco Samouco