Entrevista #7: Hugo Oliveira | O guarda-redes "global", a Paz e a Pausa, do consciente para o inconsciente e o parar para jogar bem

18 de Fevereiro, 2021 - 12 mins de leitura

Hugo Oliveira trabalha com guarda-redes e é isso que faz dele um dos treinadores portugueses mais conceituados, até internacionalmente. Já passou pelo Benfica, pela Premier League e pelas seleções portugueses. Já auxiliou Jorge Jesus, Rui Vitória, Carlos Queiroz e Marco Silva; mantém conversas com Juanma Lillo, privou e viu, de perto, como trabalham Julian Nagelsmann ou Pep Guardiola. Anda sempre com um bloco e uma caneta para que nenhum pensamento, nenhuma reflexão e nenhum exercício lhe escapem. Pensa o treino, o jogo e os jogadores ao detalhe e com profundidade.

O guarda-redes e o que ele significa hoje no futebol foi o ponto de partida de uma conversa que nos levou às profundezas do treino e do jogo, à preparação dos futebolistas, à importância da criação de ideias e de “jogares”, à neurociência, às emoções, à formação e à evolução dos treinadores, sejam de guarda-redes ou não, a metodologias de treino e até a reflexões sobre a vida e a sociedade.


captura de ecra 2021 02 18 a s 17 21 04

“O guarda-redes anda ao contrário da sociedade atual”

Para Hugo Oliveira, não será estranho ver mais ex-guarda-redes a assumirem funções de treinador principal daqui para a frente. Se, para já, Nuno Espírito Santo (Wolverhampton) ou Julen Lopetegui (Sevilha) são exceções, mas também uma lógica estatística – “só há um guarda-redes para dez jogadores de campo, logo é normal haver mais ex-jogadores de campo a treinadores” –, o futuro promete ser diferente. A principal razão: o futebol do presente exige dos guarda-redes muito mais do que há uns anos. São parte de um todo, de uma ideia, de uma forma de pensar coletiva, e estão ligados a todos os momentos do jogo, defensivos e ofensivos. “Antes era normal ouvir-se que os guarda-redes começam a ficar maduros com 28 ou 29 anos e se calhar até era verdade porque nesse período eles não treinavam o jogar coletivo, mas coisas isoladas. Então, só aos 28 e aos 29 é que tinham tido um volume de jogo real suficiente para os fazer aprender determinadas coisas. Como é que eles podiam ser treinadores no passado, quando em 80% do treino não estavam com a equipa e o seu jogar era extremamente individual, sempre separado da equipa? Não tinham um entendimento coletivo do jogo. Hoje em dia, pelo contrário, para jogar bem, um guarda-redes tem que estar por dentro da ideia de jogo, tem que pensar em todos os momentos do jogo, tem que ser integrado no treino da equipa. É natural que muitos deles venham a ser treinadores principais, até porque estão numa posição que permite ver muito daquilo que são as dinâmicas táticas e têm que ter personalidades fortes e de boa relação através das associações que são obrigados a ter na equipa. O guarda-redes vê um todo, de trás e através da zona central, o que na minha opinião é extremamente importante”. As palavras e os pensamentos que lhe estão associados são de Hugo Oliveira, 41 anos, o treinador de guarda-redes português que ajudou a moldar Oblak e Ederson.

Muita da história da evolução do futebol dentro do campo faz-se de pequenos ajustes que, juntos e contextualizados num espaço temporal mais amplo, resultam em mudanças drásticas na maneira como o jogo é visto, analisado, pensado, treinado e executado. E, à luz das ideias de Hugo Oliveira, torna-se claro que se há posição e jogador capaz de comprovar isso mesmo é o guarda-redes. “As regras, as novas ideias dos treinadores e até as próprias características de alguns guarda-redes fez com que essa evolução tenha caminhado para a importância do guarda-redes ser cada vez maior. Hoje, o guarda-redes não vive numa ilha, à parte da sua equipa. Vive num continente, faz parte de um todo, de uma ideia coletiva, e tem funções que o tornam decisivo no momento defensivo, mas também no momento ofensivo, sustenta o treinador português.

Faz sentido, certo? Durante muito tempo, o guarda-redes praticamente só precisava de usar as mãos. Até que uma mudança regulamentar, que o impede de agarrar a bola depois de um passe com o pé de um colega de equipa, exigiu também fosse capaz de jogar com os pés. As leis, portanto, foram o ponto de partida de uma revolução na maneira como o guarda-redes joga. Com isso também as equipas alteraram as formas de se organizarem, com e sem bola. “Se pensarmos e analisarmos o jogo nos seus momentos capitais, naqueles que são os momentos de decisão, ou seja o início e o fim (das jogadas), percebemos que as funções do guarda-redes estão intrinsecamente ligadas a esses momentos, nomeadamente a construção de jogo da própria equipa e na prevenção e na defesa da sua baliza. O jogo de hoje obriga o guarda-redes a fazer muito mais, por isso ele tem que ser um atleta global, diz Hugo Oliveira. Mais do que nunca, o guarda-redes está ligado à equipa, a uma ideia de jogo, a formas de estar e de pensar coletivas e longe da individualidade. “Costumo dizer que o guarda-redes tem andado ao contrário da sociedade. Se pensarmos na sociedade atual, mais egocêntrica e mais distante, o guarda-redes está a fazer o caminho oposto, que é o caminho de aproximação à sua sociedade, que é a equipa e o jogar da equipa. O guarda-redes já não pode viver sozinho, tem que viver cada vez mais com a equipa, com tarefas diretas e indiretas com todo o jogar e que definem e decidem muito do jogar da equipa, acrescenta.

Tanta evolução obriga o guarda-redes a fazer coisas que há uns anos pareciam impensáveis. Com bola, tem que saber jogar com os pés; sem bola, precisa de saber controlar a profundidade, jogar longe da baliza e defender o espaço nas costas da defesa. Ou seja, tem que tomar muitas mais decisões, que se querem sempre enquadradas num coletivo. E para isso tem que entender o que o rodeia, a tal sociedade em que está inserido. Antes de executar, precisa de ler, interpretar, perceber e tomar as melhores decisões para o todo, a equipa: o guarda-redes tem que perceber o jogo todo e o jogo e a equipa têm que perceber o guarda-redes. “A avaliação de um guarda-redes, e até dos jogadores, sobre se joga bem ou não num determinado momento do jogo está sempre ligado às soluções e aos caminhos que a sua equipa dá. É mais fácil jogar numa equipa que tem caminhos definidos para o jogo ou é mais fácil ter que decidir no meio da anarquia? Por isso, os treinadores têm que entender que o guarda-redes faz parte desse jogar coletivo que querem, a defender e a atacar, porque o guarda-redes está nos momentos fulcrais. Por exemplo, no pontapé de baliza a decisão do guarda-redes vai influenciar todo o caminho do jogar da sua equipa, logo se a decisão do guarda-redes não for parte de um pensar e dos mesmos princípios do treinador isso faz com que as coisas não corram bem. Nos momentos sem bola, é igual. A posição, as distâncias e as associações ajudam ou estragam a equipa, tal como influenciam, mal ou bem, o jogar do adversário. Um guarda-redes para jogar bem tem que estar por dentro da ideia de jogo da sua equipa, com e sem bola.

Paz, Pausa e Respirar para jogar bem

O jogo de pés está intrinsecamente ligado a um desses momentos, daí ser cada vez mais importante nas ideias dos treinadores, na organização e na construção de caminhos e dos jogares das equipas. Hugo Oliveira considera, contudo, que esse entendimento e, consequentemente, a preparação dessas ações estão incompletas. Afinal, a execução, o gesto técnico, é apenas a última parte de um processo que é cognitivo primeiro e físico depois. Daí exigir muito mais atenção do ponto de vista do treino, até a um nível intelectual e mental. Caso contrário, dificilmente garante bons resultados: uma boa execução só tem valor depois de uma boa decisão. Quando falamos em jogar bem com os pés não podemos falar só na execução. Jogar bem com os pés é ter a capacidade para interpretar e para tomar boas decisões, que depois têm a execução. Mais do que ler o jogo, o guarda-redes tem que ter a capacidade de interpretar. Ver onde estão os jogadores é fácil, encontrar as soluções é mais difícil. No fundo, estamos a falar de interpretação através de um posicionamento e de uma relação (o tático) e depois uma execução, que é o técnico. Tudo isto imbuído por uma capacidade de decisão que está relacionada com o mental e neste ponto chegamos aquilo que eu acho fundamental para jogar bem com os pés: ter paz e pausa. Com paz e pausa, decidimos sempre melhor. Um dos guarda-redes que eu vi jogar melhor com os pés foi o Van der Saar e ele tecnicamente não era fabuloso, mas tinha a paz e a pausa para encontrar os melhores caminhos”, explica Hugo Oliveira.

Tal como a sociedade do cansaço descrita pelo filósofo Byung-Chul Han, também o futebol vive no seu mundo exageradamente frenético, irrespirável quase, algo que para o treinador português dificulta a tomada de decisão dos jogadores. E se a tomada de decisão não for a melhor, prejudica o funcionamento e a harmonia das equipas. “Muitas vezes é melhor estar parado. Hoje, existe um sobrevalorizar tremendo sobre o fazer rápido, sobre a intensidade, quando aquilo que para mim é fundamental tem a ver com essa paz e essa pausa para poder interpretar e executar. Deixámos de ter a perceção do parar, mas tomamos sempre melhores decisões quando estamos mais tranquilos. O que não pode parar são os olhos, a capacidade interpretativa, o teu cérebro. Mas o que convém que pare é a tua capacidade de tomar decisões de uma forma tranquila. Esse parar é que vai levar à surpresa e a surpresa é que vai criar soluções para resolver problemas que, obviamente, às vezes têm de ser execuções e movimentações rápidas, mas que só serão efetivas se realizadas no tempo certo e no espaço certo. Às vezes conversava com o (Pablo) Aimar – os médios têm essa sensação, principalmente aqueles com a visão completa do jogo, que sabem parar o jogo – sobre isto: antes de sprintar tens de saber correr e antes de saber correr tens de saber andar e antes de saber andar tens de saber estar parado para poder ver e observar. Às vezes é melhor estar parado e estar no sítio perfeito do que estares em movimento para o sítio errado. O segredo do jogo é interpretar no tempo e no espaço certo com a paz adequada, porque de nada adianta chegar antes ou depois ao espaço certo, ou chegar no tempo certo no lugar errado. Os grandes jogadores, os craques, nem a relva estragam. Vão pelo posicionamento correto, pela interpretação certa, pelo domínio dos princípios coletivos, pela sua natureza. Simplificam o complexo”.

Se entendermos as equipas como um organismo vivo, com características físicas e mentais, mas também espirituais e emocionais, então as pausas são essenciais em nome de um bem maior e sem o qual ninguém é capaz de viver, muito menos pensar bem, decidir em conformidade e executar a ação. Parar é essencial e neste aspeto os guarda-redes também são determinantes. “O Oblak, o Ederson, o ter Stegen, o Alisson dominam a arte de parar para executar mesmo que o tenham de fazer em movimento. A paz e a pausa que eles dão às suas equipas permite fazer algo que é cada vez mais difícil no jogo e na sociedade, que é respirar, refere.

Obviamente, não é só o jogar do guarda-redes que se alterou nos últimos anos. Se o jogo pede mais coisas e exige mais de quem também tem que defender a baliza, então o treino e tudo o que o envolve, desde a análise, às metodologias, aos feedbacks e à operacionalização tem que acompanhar essa evolução. “Sem robotizar e sem clonar jogadores”, salienta Hugo Oliveira, exemplificando esta ideia com Ederson (Manchester City) e Oblak (Atlético Madrid), com quem trabalhou no Benfica. “Não era possível o Oblak ser como o Ederson porque o Oblak não é o Ederson, mas era possível o Oblak jogar numa equipa que lhe peça mais ao nível da construção de jogo porque ele tem a tal capacidade de interpretação. Só que ia fazê-lo à sua maneira. Os treinadores têm que conseguir olhar e ver coisas diferentes em cada um, senão era impossível ajudar o Oblak a crescer e depois ajudar a crescer o Ederson, e a seguir o Júlio César, o Gomes ou o Jordan Pickford. Aquilo que temos que fazer é ajudar a que eles consigam na sociedade que é igual para todos – o jogo – e que vai exigir as mesmas funções, as mesmas capacidades e as mesma relações de todos, fazer e ter as coisas importantes através do seu ser”, diz.

Hugo Oliveira insiste muito nesta ideia e ao longo da conversa, reafirma sistematicamente a importância de se respeitar a natureza dos jogadores e, claro, dos guarda-redes em todo o processo de treino e de integração numa ideia de jogo coletiva. Só assim, frisa, será possível tirar o melhor de cada um e colocá-lo ao serviço da equipa. “É muito importante perceber isto: se o guarda-redes não estiver em paz e ligado à sua natureza, quando alguém do lado lhe gritar para ele chutar longo, ele vai chutar longo; e quando lhe pedirem para jogar para a direita, ele vai jogar para a direita. Tudo isto começa na natureza de cada um, mas termina noutra coisa fundamental: enquanto treinadores, temos que fazer com que ele acredite num caminho coletivo, porque se ele não acreditar vai jogar constrangido e quem joga constrangido tem mais dificuldades em tomar decisões certas. Se falhar dois passes seguidos, o guarda-redes tem que sentir que quem criou aquele pensar, aquele jogar está em plena tranquilidade para que ele o faça outra vez”.

captura de ecra 2021 02 18 a s 17 21 33

Jogar diferente, treinar diferente

E isto leva a outro ponto fundamental: se o guarda-redes joga com a equipa, tem que treinar com a equipa o máximo de tempo possível e não pode trabalhar à parte, longe das dinâmicas coletivas, da especificidade do jogo e sem a tal presença numa forma de estar e de jogar. Sem, evidentemente, esquecer as especificidades da função. “É fundamental que a semana, o treino, seja um treinar de acordo com aquilo que se quer jogar e não que o guarda-redes esteja numa ilha e num treino distante e depois ser inserido na equipa uns minutos. Eu quero que os meus guarda-redes passem o máximo de tempo possível com a equipa. Porque aquilo que é o jogar está inerente àquilo que é preparado coletivamente: o jogo é coletivo, explica Hugo Oliveira.

Falando mais concretamente da sua forma de treinar, o treinador português destaca o princípio orientador de “criar constrangimentos que vão de encontro a uma ideia coletiva”, edificando a partir daí toda a metodologia com o objetivo de permitir ao guarda-redes perceber, executar e incorporar comportamentos que depois se concretizem de uma forma inconsciente. “Para mim, o treino é a criação de constrangimentos para levar a uma determinada forma de sentir. Antes de pensar, nós sentimos e o treino, no fundo, é criar formas de estar no inconsciente. Treino é análise, treino é relações, treino é formas de estar e isso é o que vai para o jogo. Nesse sentido, vou sempre do simples para o complexo, ou seja, da ação individual do guarda-redes para aquilo que é a ação dentro do coletivo. Por isso é que é fundamental que o guarda-redes trabalhe com a equipa, porque isso é levar o jogo para o treino. No treino, acabas por criar situações do jogo para que o guarda-redes interprete e perceba, primeiro de uma forma consciente, aquilo que está a acontecer e que por ele, e pela sua natureza, encontre a solução para aquele momento, até que tudo aquilo que se trabalha termine no inconsciente, que o leve a fazer as coisas naturalmente. Na minha opinião, o papel do treinador, do professor, é ajudar a criar caminho para a aprendizagem. O fundamental são os jogadores: nós, treinadores, não ensinamos, eles, os jogadores, é que aprendem e apreendem.

Como uma consequência lógica, Hugo Oliveira defende ainda que aos treinadores de guarda-redes também é exigido cada vez mais conhecimento sobre o jogo. Devem ser “um assistente do treinador principal que vê o jogo global através do guarda-redes” e não um simples “preparador de guarda-redes”. “Fala-se muito de treino específico de guarda-redes, mas o específico do guarda-redes é jogar com uma equipa, dentro de uma ideia coletiva, perante um adversário que também tem ideias, e encontrar o caminho do golo para a sua equipa e prevenir o golo na sua baliza. Isso é que é específico! E eu enquanto treinador de guarda-redes tenho que ter a capacidade de criar essa especificidade. O específico é o futebol. Se nós jogamos temos que treinar para jogar. E se o jogar é cumprir determinadas funções numa sociedade coletiva, é isso que eu tenho que treinar”, atira Hugo Oliveira.

Neste sentido, “o caminho dos treinadores de guarda-redes é serem mais um assistente do treinador, mas que vê o jogo através dos olhos do guarda-redes”. E isso exige estar preparado para ver o jogo em toda a sua complexidade para ajudar um guarda-redes que “está ligado a todos os momentos do jogo”. “Para defender a baliza, tenho que perceber de organização defensiva e de transição defensiva. Mas o guarda-redes também é muito importante no processo de construção, logo eu tenho que perceber de organização ofensiva e a ler e interpretar o adversário e os seus jogares. Mais: que golos cresceram nos últimos tempos? Através de bolas paradas. Então, o treinador de guarda-redes tem que entender o que acontece nas em bolas paradas. Se o guarda-redes é um elemento global, o treinador do guarda-redes tem que ser um assistente global e isso obriga a perceber o jogo todo.

Então, chamar guarda-redes ao guarda-redes ainda faz sentido? “O guarda-redes não é mais nem menos do que um jogador que tem uma importância fundamental no jogo e que está de forma direta nos momentos de decisão do jogo”, conclui Hugo Oliveira.

Vasco Samouco