Entrevista #12: Mads Davidsen | "Demasiados clubes são sonhadores, têm esperança e fé mas não têm um plano"

22 de Julho, 2021 - 5 mins de leitura

Mads Davidsen é um escritor, empreendedor e consultor na área do futebol, tem experiência como treinador e diretor desportivo, e atualmente trabalha para o Al-Jazira, o atual campeão dos Emirados Árabes Unidos. Já passou por clubes como o Brondby – primeiro como treinador e depois como consultor estratégico – e o Shanghai SIPG, onde foi adjunto e Diretor Técnico. A juntar a isso, criou a Optima Football e acabou de publicar o livro ‘How hard can it be?’, disponível em inglês a partir de agosto.

Nesta entrevista, feita via e-mail (e ajustada para maior fluidez e melhor compreensão), Mads Davidsen fala sobre construir projetos sustentáveis, explica porque é que os clubes passam cada vez mais dificuldades e analisa o papel, decisivo, dos diretores desportivos para o sucesso dos clubes. A formação de jogadores, o futuro do futebol – dentro e fora do campo –, a importância de pensar a longo-prazo e não tomar decisões emocionais e até o ‘segredo’ da evolução do futebol dinamarquês são outros temas abordados.

“O que fazemos hoje com a formação (dos jovens) vai beneficiar ou prejudicar o futebol no país daqui a dez anos”.

FOTO: Twitter Mads Davidsen

PS: Consulte o site de Mads Davidsen para conhecê-lo melhor.


Quais são as principais qualidades que todos os diretores desportivos têm?

Depende do clube e do projeto em que estão. Para mim, existem dois tipos de diretores desportivos: o ex-treinador, com conhecimento do estilo de jogo e métodos de treino, com educação de treinador e de jogador e com conhecimento analítico; e o ex-jogador ou ex-chefe de scouting, que conhece o scouting muito bem e que tem uma boa rede de contactos com agentes e empresários. Por isso, os clubes devem ter uma visão clara e definir muito bem o que querem desse cargo para encontrarem o perfil certo.

Como perspetiva as funções do diretor desportivo daqui a cinco ou dez anos? Serão muito diferentes das atuais?

Acho que a tendência é virar-se cada vez mais para a parte estratégica, em que precisará se supervisionar a parte desportiva do clube, mas também toda a visão do clube para o futuro, para além de ter que definir os indicadores-chave de performance com os treinadores e as equipas técnicas e também com a Direção. As exigências para a função vão aumentar.

A relação entre o diretor desportivo e o treinador é crucial para um clube ter sucesso. Como fomentar essa boa relação?

Alinhamento. Desde o primeiro dia. Geralmente, as frustrações e os conflitos são consequência dessa falta de alinhamento e da incapacidade de gerir as expectativas. A transparência e ter uma comunicação aberta são obrigatórias, até ANTES do início da cooperação.

Tem experiências em diferentes países e muitos clubes. A sua visão, as suas ideias e as suas estratégias são únicas ou adapta-as ao contexto?

Temos sempre que acompanhar a evolução do jogo e eu estou constantemente a analisar e a tentar perceber como é que o futebol vai evoluir. Por exemplo, uma coisa muito importante no trabalho com os jogadores da formação é que muitos deles não jogarão a nível sénior até daqui a cinco ou sete anos, então nós temos que os preparar para aquilo que acreditamos que o jogo vai ser em 2025 ou 2027.

Vivemos um período em que muitos clubes estão a passar por muitas dificuldades financeiras. Quais são as razões?

Há dois anos, criei uma empresa (Optima Football) precisamente para tentar promover um modelo sustentável para os clubes. À exceção dos melhores 25 clubes, que têm um modelo financeiro diferente, todos os outros devem tentar criar o melhor modelo possível para eles. Mas ainda existe muito desperdício de recursos no futebol e temos que travar isso. Ainda há demasiados clubes sonhadores, que têm esperança e fé, mas não têm um plano. E como se costuma dizer, “esperança não é uma estratégia”. Primeiro, há que criar e desenvolver uma visão e uma estratégia realística e sustentável; depois, é preciso agarrar-se a essa estratégia mesmo quando os resultados não aparecem. Mudar é muito caro e ao longo do tempo deixa de ser eficiente.

Há algum modelo ideal?

Não, mas tem que ser um modelo sustentável e que seja desenvolvido de acordo com a visão do clube. Alguns querem apostar em jogadores da casa, da formação, mas, talvez, isso não seja o melhor para outros. Por isso, é essencial definir o que cada clube quer ser e como é que deseja competir.

O futebol mudou muito nos últimos anos. Espera que essas mudanças continuem e quais é que serão?

Estamos na era das estatísticas e da evolução técnica e tecnológica, por isso é provável que apareçam mais ferramentas relacionadas com isso. Mas, no fim de contas, o futebol será sempre futebol e o treino e a formação continuam a ser os aspetos mais importantes. Outras inovações que apareçam serão vantagens marginais a encontrar.

FOTO: Twitter Mads Davidsen

Gerir um clube será muito diferente no futuro?

Espero ver mais clubes a serem geridos com projetos e estratégias claras e definidas, em que as decisões são tomadas tendo em conta a visão do clube e um plano detalhado para os próximos cinco anos. E, mais importante, que se mantenham fiéis a isso quando perderem dois jogos. O futebol continua a ser uma indústria gerida emocionalmente e só a pensar no curto-prazo, onde pessoas com pouco conhecimento decidem demasiadas coisas.

Que importância deve ter a ‘Big Data’ num clube?

Penso que pode ser uma ajuda, como uma ferramenta de suporte, mas eu não acredito em clubes geridos apenas com recurso à ‘data’. Vamos sempre precisar de experiência, ‘know-how’ e muitos anos de trabalho prático no campo para ter a última palavra nas decisões. Mas não há dúvidas de que a ‘data’ pode ajudar-nos a tomar decisões mais inteligentes.

Também trabalhou como treinador de formação e tem experiência em desenvolver talento, como são os casos de Hojbjerg (Tottenham) e Andreas Christensen (Chelsea). Quais são os grandes desafios que clubes e treinadores enfrentam hoje na formação?

O primeiro tem a ver com a falta de recursos e meios para trabalhar porque a maioria dos clubes investe principalmente na equipa principal. O segundo está relacionado com a tal falta de alinhamento. Isto é, mesmo que se esteja a fazer um bom trabalho na formação, o caminho para esses jogadores não é claro e esses talentos não chegam a ter oportunidades para se mostrarem e crescerem. Mais uma vez, tem tudo a ver com a estratégia definida pelo clube.

A Dinamarca (cinco milhões de habitantes) vive um período muito bom no futebol. Tem clubes e projetos muito interessantes (Midtjylland, Brondby, Nordsjaelland, Silkeborg…), bons jogadores jovens, bons resultados a nível de seleções… É uma realidade que conhece bem. Quais são os segredos?

Eu não acredito em segredos. Há 15 anos, um grupo de treinadores de topo tentou analisar e prever como seria o futebol no futuro e através disso elaboraram um plano de como a formação e o treino de jovens deveria ser para formar jogadores de topo para o futuro. Nessa altura, trabalhava eu como treinador de formação, todos tentámos seguir esse plano e hoje vemos os resultados, com vários jogadores dinamarqueses a competir nas cinco melhores ligas, o que é uma vantagem se se quer ter uma seleção nacional forte. São os efeitos de se pensar a longo-prazo: o que fazemos hoje com a formação vai beneficiar ou prejudicar o futebol no país daqui a dez anos.

Vasco Samouco