O futebol deambula entre um paradoxo. Nunca, como hoje, movimentou e gerou tanto dinheiro e, no entanto, vive o período em que mais clubes fecham as portas ou que estão em muitas dificuldades financeiras. E isso acarreta logo dois problemas graves e que merecem reflexão primeiro e ação depois. Quanto mais rápido, melhor. O primeiro problema é que cada vez mais é só uma figura (investidores individuais ou coletivos) que sustenta os clubes, grandes mas não só, o que os deixa numa posição frágil; e o segundo é que se acentuam as dificuldades para os clubes se aguentarem sem dinheiro alheio, nomeadamente os mais pequenos, que representam quase a totalidade de todo o sistema. Não parece, mas os dois problemas estão ligados. Quanto mais dinheiro, mais depressa tudo passa a girar à volta do dinheiro e os custos e as exigências para todos os envolvidos na atividade aumentam. E quanto mais dinheiro, maior é a tendência para se pensar que só o dinheiro pode atenuar as diferenças agravadas pela loucura financeira.
O futebol vive acima das suas possibilidades porque se sustenta – e essa tendência tem aumentado nos últimos anos – num dinheiro que não é dele. Só que esse dinheiro muda tudo. Muda o jogo, muda a visão, muda sensibilidades, muda a maneira de se olhar para as coisas, muda a forma como se faz, muda comportamentos, muda modelos desportivos e de negócio. Muda tudo. E a maior parte de quem está envolvido não tem capacidade para se aguentar nesta exigência, mesmo recorrendo ao mesmo modelo de gestão, que, resumindo, passa por não se olhar a milhões para atingir objetivos. O dinheiro atrai jogadores, melhora as equipas e isso provoca danos irreparáveis. Os outros vão atrás porque pensam (ou será que acreditam mesmo?) que só assim podem conseguir competir minimamente, e não pesam as consequências dessas atitudes. Se é o dinheiro a mandar, então os custos aumentam obrigatoriamente, de maneira gigante e até confusa. Porquê? Porque a única maneira de contratar os jogadores que se quer é pagando mais (pela transferência e pelo salário). E assim sucessivamente, até os valores envolvidos serem manifestamente exagerados, sobrevalorizados e só possíveis por serem alimentados por milhões estranhos.
A minha convicção de que o futebol está à beira de um caos de consequências imprevisíveis é cada vez mais forte. Não só porque suportar o atual volume de negócios e de dinheiro a circular é insustentável, mas também porque a sobrevivência dos clubes mais modestos é cada vez mais duvidosa e está mais e mais ameaçada, se tivermos em consideração que a dimensão das receitas está longe de acompanhar os custos que eles têm que suportar. São problemas que exigem resposta imediata, sendo que parte importante da solução estará na maneira como se imaginam projetos, se elaboram planos e se perspetiva o futuro. Repensar o modelo de negócio é urgente. Não pode ser que para se manterem ao alto nível e para ambicionarem outras conquistas, os clubes tenham que hipotecar a saúde financeira.
VER PARA ALÉM DO DINHEIRO
Mas nem tudo é mau neste pandemónio financeiro que se tornou o futebol e que provocou fissuras e dúvidas a nível organizacional. O que esta realidade também provou é que só ter muito dinheiro não chega e esse deve ser o pormenor que clubes, dirigentes, gestores, diretores desportivos e treinadores devem ter bem presente. Aliás, uma das maiores falhas em todo este cenário é a ausência dessa clarividência de que o dinheiro, por si só, não é decisivo. O dinheiro é, isso sim, a única solução quando não se tem mais nada, e essa maneira de ver as coisas tem um efeito devastador porque só leva a gastar mais e mais, seguindo-se a insustentabilidade. Sem um projeto definido e um caminho traçado, o dinheiro perde força à medida que o tempo avança. Colocar o dinheiro acima de tudo é hipotecar a visão a médio e a longo-prazo, é colocar tudo em risco e sem certezas de qualquer retorno.
O dinheiro é frágil. Não fideliza, não cria laços sentimentais, não garante mais compromisso, mais esforço ou mais vontade de ajudar, não cria valor por si só. Tem outro senão significativo: quando se convence alguém com meros argumentos financeiros, há que ter a noção de que esse alguém será o primeiro a bater com a porta quando lhe acenarem com mais milhões. É, portanto, uma luta perdida, pois há sempre alguém que tem mais dinheiro do que nós. A boa notícia é que é possível fazer a diferença por outros caminhos e é nisso que os clubes se devem focar e, acima de tudo, diferenciar-se. Uma ideia, uma causa, uma visão, uma perspetiva de futuro prometedora, um contexto que promova o desenvolvimento individual, um conjunto de valores... Isto também atrai e tem a vantagem de serem elos de ligação mais poderosos e mais fortes emocionalmente, para além de serem mais sustentáveis e racionalmente mais ponderados.
O futuro pertencerá aos que conseguirem fazer muito com pouco dinheiro (ou menos, em alguns casos). Aos que se conseguirem diferenciar. Porque isso já não é apenas uma necessidade, é uma urgência de uma indústria em que quase todos os clubes vivem acima das possibilidades, o que ficou evidente com o impacto que umas semanas sem futebol e receitas teve por esse Mundo fora. O coronavírus deixou a nu as fragilidades de um modelo de negócio obsoleto e com margem de crescimento mínima, mas esta crise também emerge como uma boa oportunidade para apressar uma mudança que tem que ser drástica.