A criatividade, por Gonçalo M. Tavares

04 de Novembro, 2022 - 5 mins de leitura

Durante uns tempos, andei às voltas com a ideia, defendida por muitos treinadores (de futebol e não só), de que os futebolistas mais criativos precisam de ordem, de organização, de um contexto/ambiente aceitavelmente controlado à volta deles para se expressarem melhor. Mais do que encontrar explicações teóricas, concordar ou discordar com as palavras, procurava respostas e razões minimamente plausíveis, palpáveis, comprováveis. A ideia fazia todo o sentido, mas estava com dificuldades em encontrar exemplos práticos.

Como acontece tantas vezes, a resposta não estava no futebol. Nem sequer no desporto. Estava na literatura, no ato de escrever: foi o escritor Gonçalo M. Tavares que me deu algumas luzes.

Não raras vezes, associa-se a criatividade à liberdade. Isto é, para pensar, dizer, escrever ou fazer coisas “geniais”, precisamos de ter tempo, de estar soltos, desimpedidos, sem amarras e sem constrangimentos para a imaginação e o inconsciente trabalharem. Acontece que, provavelmente, não é bem assim. Vejamos: se colocarmos o jogador mais genial sozinho em campo, sem adversários, e o objetivo for conduzir a bola até marcar golo, é quase garantido que nada de extraordinário acontecerá — ele limitar-se-á à correr com a bola e pronto. Porque não há nada a atrapalhá-lo, também não há razões para ser “genial”. Faz sentido?

A teoria do constrangimento

Graças a uma iniciativa da Câmara Municipal de Paredes, passei (com mais algumas pessoas) largas horas com Gonçalo M. Tavares. É um dos maiores escritores portugueses (de sempre), estuda filosofia, linguagem, arte, é professor de Reabilitação Psicomotora, dá aulas a futuros professores de crianças com deficiência física e mental. Discutimos ética, falámos sobre o amor, sobre mitologia, matemática e história, sobre a cultura oriental (nomeadamente, a japonesa), mencionámos músicos, pintores, artistas plásticos — é impressionante como tudo está interligado e evolui de acordo com princípios comuns e — e fizemos exercícios. Um deles, respondeu às minhas inquietações sobre a tal convicção dos treinadores que parece conspirar contra a liberdade dos mais geniais. Parece? Não! Agora, diria que conspira mesmo, ponto. Mas o mais interessante é notar que, propositadamente ou não, o objetivo é esse mesmo; só assim aparecem os lances geniais. “A liberdade retira criatividade?”, questionou Gonçalo M. Tavares. Mas retoricamente.

Para responder à pergunta, lançou-nos um desafio. Aleatoriamente definiram-se cinco letras (vogal-consoante-vogal-consoante-vogal) e a partir daí tínhamos que escrever uma frase com cinco palavras começadas por essas letras. Fácil? Nada disso. Escolher uma até pode ser simples, duas também, mas juntar cinco palavras que obedeçam a determinados critérios e que, juntas, façam sentido tem que se lhe diga. É preciso ser criativo, pensar fora da caixa. Aconteceu-me escolher uma e apagá-la a seguir porque não ficava bem ao lado das restantes, etc, etc. Acho que dá para perceber a complexidade e a dificuldade do processo. Estivemos nisto (a pensar, imaginar) uns bons minutos e a verdade é que surgiram algumas frases muito boas, riquíssimas e que (o que, talvez, seja mais extraordinário) dificilmente nos lembraríamos de colocar lado a lado se não fosse o facto de estarmos privados de liberdade.

Pense-se agora no seguinte. O mesmo desafio (escrever uma frase qualquer com cinco palavras), mas sem qualquer constrangimento. A dificuldade desce drasticamente, certo? Em cinco segundo vem-nos à cabeça uma, duas, três frases diferentes. São prosaicas e banais, mas elas surgem. Ou seja: se pudermos escrever qualquer coisa (se tivermos liberdade total), a criatividade e a imaginação são dispensáveis. Continua a fazer sentido?

Nem de propósito, nos últimos dias um golo no campeonato russo de futsal andou pelo Mundo. “O melhor golo de sempre”, escreveu-se. Já influenciado pelas palavras de Gonçalo M. Tavares, vi o lance com outros olhos e lá estava: naquela situação, o jogador estava privado de quase toda a liberdade; a bola vinha no ar e ia a sair pela linha de fundo, ele estava de costas para a baliza. Não lhe restavam muitas soluções, logo teve que ser imaginativo e criativo para “improvisar”. Resultado: foi genial.

Se pensarmos nos momentos de génio a que assistimos e que lembramos, os golos incríveis, as jogadas extraordinárias, o que é comum a todos não são os gestos técnicos, as combinações, os remates, as fintas… Tudo isso varia de lance para lance. O que todos têm em comum é o grau de dificuldade que lhes estão inerentes, os tais constrangimentos que obrigam os jogadores a ser criativos, a fazer coisas únicas e a pensar em soluções geniais.

“Quanto mais a velocidade aumenta, mais a liberdade diminui”

A velocidade é outro bom exemplo para explicar como os constrangimentos são essenciais para o aparecimento de coisas geniais. Quanto mais rápido for uma ação, menos tempo e menos espaço há para estar (bem) informado, processar a informação e decidir. Consequência: tomar boas decisões torna-se mais difícil. Como o filósofo Paul Virilio defende, a liberdade diminui porque 1) acontecem mais coisas, que precisam de ser processadas (compreendidas) e 2) é preciso decidir mais rápido.

No futebol, isso é notório. Com o jogo mais rápido e, logicamente, mais complicado e mais complexo, a capacidade de resposta dos jogadores é dificultada. Driblar é mais difícil, construir uma boa sequência de passes igualmente, fazer um desarme, uma tabela… tudo exige mais. O que todos os grandes jogadores têm em comum é que não precisam de muito tempo e de muito espaço para brilhar. Dizemos que são geniais, não (só) por aquilo que conseguem fazer, mas por aquilo que fazem num jogo caótico, quase irrespirável. Os lances e as jogadas geniais aparecem porque o contexto, ao ser exigente e complexo, assim obriga.

“Na arte, o erro é uma metodologia”

Tomar a melhor decisão não significa, automaticamente, o sucesso da ação. Tal como tomar uma má decisão não significa o insucesso da ação. É possível decidir mal e marcar um golo, por exemplo. E, neste caso, a decisão foi, realmente, má? Acredito que sim, mas: pode um (aparente) erro estar na origem de uma solução/alternativa que antes não tinha sido pensada?

De acordo com Gonçalo M. Tavares, “o erro está na origem da criação de arte, de algo extraordinário”, “é uma metodologia”. Isto é, mudar coisas de sítio, virar ao contrário, alterar a ordem de alguma coisa, imaginar objetos com erros (outro exercício que fizemos) é um ponto de partida para criar e construir algo inovador, belo e até funcional. A obra mais conhecida de Marcel Duchamp chama-se “A fonte” e consiste simplesmente num urinol… virado ao contrário. O autor olhou para um urinol e viu uma (possível) fonte de água. Do “erro” nasceu, segundo alguns, “obra de arte mais influente de todos os tempos”.

Uma casa normal não tem nada de especial, mas se pegarmos nas figuras geométricas que a constituem e as mudarmos de sítio (o tal erro), talvez nasça algo surpreendente e até funcional. Será isto também aplicável ao futebol?

Vasco Samouco