Lewis Mumford: “Devido à dependência excessiva de mecanismos e automatismos, a nossa geração começou a perder o segredo de como cuidar da humanidade do Homem”.
Aos humanos, a única coisa que não se lhes pode tirar é a capacidade de pensar. Pode-se manipular-lhes o pensamento, dizer-lhes e convencê-los (d)o que pensar, mas é impossível travar-lhes os pensamentos. Pelo contrário, é possível – e já se fez – moldá-los de tal forma que eles deixem de sentir e deixem de se emocionar. Assim, faz sentido concluir que o que nos torna verdadeiramente humanos é o que sentimos e como nos emocionamos, já os verdadeiros humanos, que se mantêm e vivem como tal, são os que resistem à usurpação das emoções e dos sentimentos. Só não há desumanização quando se sente, quando as emoções são tais que tomam conta de nós, levando-nos a agir. O contrário disso é a desumanização e ela não é incompatível com a capacidade de pensar. Pensamos e mesmo assim tornamo-nos desumanos, insensíveis, frios. Aliás, muitas vezes é por pensarmos – ou melhor, por nos limitarmos a pensar – que nos desumanizamos. Racionalizamos tudo, racionalizamos demasiado.
Esta dicotomia emoção-razão está muito presente hoje em dia. E o que é interessante verificar, analisar e até contestar (como pretendo) é o que associamos a ambas e como vemos uma e outra. A emocionalidade é vista como um defeito, a racionalidade como uma virtude. Temos que controlar as emoções, como se elas fossem normalmente prejudiciais, mas não temos que controlar a razão, como se ela fosse normalmente benéfica. O futebol também está impregnado desta ideia, vive a era do “controlo emocional”. Não só no campo, onde isso é tantas vezes evocado e serve de justificação para vitórias e derrotas, mas também fora dele, onde (quase) tudo é feito, quantificado, analisado e estudado para depois se encontrarem “razões” para tomar determinadas decisões e explicar certas escolhas. Até certo ponto, é compreensível que assim seja, mas à medida que os mecanismos que permitem isso se vão impondo, vale a pena pensar se também aqui não é preciso começar a ter em conta uma espécie de controlo: se calhar, também se perdem ou ganham jogos por se ser mais ou menos racional.
Um dos fundamentos que sustentam a necessidade de “controlo emocional” é o preconceito de que as emoções nos levam a fazer coisas sem pensar e que essa espécie de irresponsabilidade/irreverência atrapalha a “tomada de decisão”, vinculando-se esse “sem pensar” automaticamente a más decisões.
A este propósito, vale a pena recorrer ao livro “Sentir e Saber”, no qual António Damásio aponta como não é preciso pensar para se ser inteligente, resumindo essa ideia ao conceito “inteligência sem mente”. Por isso é que as plantas, os micróbios, as moléculas, os átomos e os mais insignificantes organismo são seres inteligentíssimos, que também tomam (boas) decisões, respondem da maneira adequada a estímulos, sobrevivem a condições externas, ajustando-se e adaptando-se ao ambiente, e vivem. Não pensam, mas nem por isso deixam de ser inteligentes.
Ainda António Damásio: “Os sentimentos são sempre informativos, transportam em si mesmos conhecimentos importantes e introduzem esses conhecimentos no fluxo mental (…) os nossos sentimentos não são, de forma alguma, autónomos, mas fundem-se com as coisas e com os eventos que sentimos”.
Assim, num cenário radical e sem possibilidade de meio-termo, o que é preferível: não pensar de todo ou pensar demasiado? Sabendo que o não pensar normalmente leva-nos a agir (e, muitas vezes, inteligentemente), enquanto o pensar demasiado quase sempre produz um estado de dúvida e apatia, levando-nos assim à inação (muitas vezes, nada inteligente).
Claro que as emoções (que provocam sentimentos) nem sempre são vantajosas e produtivas. O que tantas vezes se esquece e/ou ignora é que também estão na génese da genialidade, que a paixão, o desespero, o medo, a revolta, a felicidade, o espanto, o entusiasmo, a depressão, a euforia nos levam a produzir as coisas mais inesperadas, mais impactantes, mais surpreendentes e mais extraordinárias. Grandes músicas, grandes poemas, grandes livros, grandes quadros têm origem nesses momentos em que é impossível controlar o que late dentro de nós, em que o pensamento, e por conseguinte a dúvida e a incerteza, fica suspenso (porque pensar, analisar, ponderar também pode tornar-se numa espécie de jaula que nos mantém dentro dela às voltas, sem parar e, consequentemente, sem conseguir encontrar a saída de lá para fora). Nessas alturas, estamos inspirados e somos levados por um arrebatamento tal impossível de explicar, criando (sendo criativos) o que a razão não consegue conceber.
David Brooks: “A sociedade moderna criou um mecanismo gigantesco para cultivar competências, mas foi incapaz de, em simultâneo, desenvolver as faculdades morais e emocionais (…) Razão e emoção não são interdependentes nem antagónicas. A razão aninha-se na emoção e confia nela”.
Não contesto que, em muitos casos, as emoções podem ser um problema, levando/provocando más decisões. O meu ponto é, por um lado, defender que elas não são sempre prejudiciais e, por outro, alertar para o facto de que também a razão nem sempre é vantajosa. E isto parece-me essencial num contexto, global e a vários níveis, em que a tendência é avançar rumo a uma racionalização (mecanização) radical e extremista, através da tecnologia e das ferramentas tecnológicas que estão cada vez mais presentes no futebol, sendo que a outra face dessa moeda é precisamente a desvalorização das emoções, dos sentimentos, das intuições e daquilo que nos torna verdadeiramente humanos, conduzindo ao atrofiamento/amedrontamento emocional.
Ainda recentemente, foram anunciadas novas regras para tornar o momento do penálti o mais mecanizado (até banalizando-o) possível. A partir de agora, “o guarda-redes não deve comportar-se de forma a distrair injusta e propositadamente o adversário”. Ou seja, não se pode jogar com as emoções, limitando-as e cingindo-as a um pequeno espaço (cada vez mais reduzido) no jogo e no comportamento dos protagonistas.
O tal “controlo emocional” não aparece e ganha força por acaso, Antes, emerge como uma parte de um plano, mais ou menos pensado e casual, que está em marcha e é velocíssimo e que visa controlar tudo e mais alguma coisa, na tentativa (condenada ao insucesso) de não deixar nada ao acaso e com isso também desprover, mesmo que involuntariamente, o futebol e o jogo da humanidade, com tudo de bom e de mau que ela tem. Há que ter a noção de que na tentativa de evitar os defeitos da emocionalidade também se está a destruir as respectivas virtudes. Com o futebol cada vez mais analisado, estudado e ponderado, logo mais cerebral e calculista, convém, então, parar para prever e discutir os custos que vêm agarrados a essa forma (lá está) de pensar.
Preferimos não cometer erros (e no caso do futebol uma das consequências desta ideia é o estar mais longe de provocá-los no adversário) à possibilidade de sermos geniais e promover a inspiração e a intuição, essa “capacidade de perceber, discernir ou pressentir uma explicação independentemente de qualquer raciocínio ou análise”. Ou seja, abdicamos da genialidade em prol da normalidade, de uma suposta segurança e de uma certa monotonia que continua a instalar-se no jogo. As emoções originam coisas negativas, sim; mas também são as emoções que originam coisas geniais. Já a racionalidade, que até pode contribuir para minimizar a margem de erro, será compatível com a genialidade?