Treinar, gerir, liderar, traçar objetivos e/ou definir estratégias tem muito a ver com fazer escolhas. Olhar para o contexto, pesar várias opções, perspetivar o futuro e com tudo isso analisado decidir o que fazer e como fazer. Decisões, essas, que são sempre tomadas tendo em vista a perspetiva de nos tornarmos ou tornar algo mais forte, mais preparado e mais capaz de responder às adversidades e de ganhar superioridade em relação aos adversários e à concorrência. Quem faz isto bem torna-se muito mais forte, tem as respectivas fortalezas bem identificadas e tenta desenvolver-se a partir delas. Quem não faz isto, ou fá-lo mal, pelo contrário, não cresce e não melhora. Como podia, se não sabe sequer quem é?
No futebol, ocorre algo muito curioso: precisamente a mesma coisa que é elogiada numa altura de sucesso, também é criticada quando os resultados não são bons. O conservadorismo/pragmatismo de José Mourinho é empolado quando o treinador português ganha, mas já não serve quando ele perde; a ideia de jogo de Pep Guardiola é uma maravilha quando o Manchester City vence, mas é demasiado romântica e rendilhada, e previsível (no sentido em que não tem um plano B) quando não ganha - não jogar sem um 9 de referência torna o ataque mais fluído e difícil de controlar, mas há alturas em que esse jogador faz falta; o estilo e a visão ‘Barcelona’ é um exemplo e um modelo a seguir quando as coisas correm bem, no entanto é olhado de lado e com desconfiança nos maus períodos (até dentro do próprio clube, como se tem visto recentemente); o aparentemente caótico futebol de Marcelo Bielsa e de Gian Piero Gasperini é uma maravilha nas vitórias, enquanto nas derrotas é confuso e desorganizado. Enfim, exemplos não faltam.
Outro: Quando Carlo Ancelotti, Zidane, Allegri, Pirlo, Fernando Santos, Luis Enrique, Ernesto Valverde ou Ronald Koeman desresponsabilizam Cristiano Ronaldo e Messi de afazeres defensivos é porque acreditam que sem esse desgaste os dois jogadores mais desequilibradores dos últimos 20 anos vão compensar essa fragilidade com grandes proveitos ofensivos e que, acima de tudo e na maioria das vezes, estes proveitos vão compensar as desvantagens táticas/estratégicas. E esta decisão implica aceitar que, às vezes, isso não aconteça.
Depois de alguma reflexão, cheguei à conclusão (para já) que esta dicotomia, esta forma de olhar para o que se passa, não só é normal, tratando-se do mundo esquizofrénico do futebol, como, e isto foi surpreendente, é lógico e faz sentido. (Embora, claro, as pessoas que hoje são/dizem uma coisa e amanhã são/dizem outra não tenham essa noção.) Porquê? Porque para se ser forte numas coisas é condição ‘sine qua non’ ser-se fraco noutras. Mais do que isso: é obrigatório assumir e ter perfeita noção dessa fragilidade. Não se pode ser bom em tudo. O importante (decisivo) é escolher bem onde se quer ser forte e aceitar as fraquezas que todas as escolhas provocam.
Se para Mourinho o mais importante é defender bem e (contra-)atacar pela certa e rapidamente, então é isso que ele vai trabalhar mais, aceitando que haverá ocasiões em que ser muito competente em posse de bola e ataque continuado lhe vai fazer falta; se para Guardiola, pelo contrário, a bola é tudo e tem que se atacar sempre, é lógico que as suas equipas sejam boas nesses momentos e que sofram quando têm que defender muito e atrás; se o Barcelona acredita que a inteligência, o drible, o passe, o centro de gravidade mais baixo, o saber jogar em ataque posicional é o que caracteriza os melhores jogadores, é esses que vai tentar formar, resignando-se ao facto de que assim estará mais longe de formar jogadores que se destaquem pelo físico. Fazer escolhas, tomar decisões nesse sentido e aceitar as consequências das mesmas. No fundo, é isto.
O mesmo raciocínio é, obviamente, aplicável a clubes com estratégias, políticas e caminhos perfeitamente identificados. Para o RB Leipzig só faz sentido investir em jogadores jovens, mas para ter os melhores dessas faixas etárias não vai poder ter futebolistas experientes e essa falta de experiência, às vezes, vai notar-se. Para o Athletic Bilbao, jogar só com jogadores bascos é inegociável. Isso dota o clube de uma cultura/identidade única, une os adeptos e cria laços difíceis de serem quebrados. Por outro lado, graças a isso, perde oportunidades de negócio vantajosas e não conta com jogadores em muitos casos talvez melhores do que os que pode contratar. Para o AZ Alkmaar nada faz mais sentido do que formar os jogadores para a equipa principal em vez de os contratar; para o Brentford, a formação não tem qualquer importância e o melhor negócio, desportiva e financeiramente, é contratar bons jogadores, desvalorizados e por preços em conta. As vantagens e desvantagens de ambos os casos não são apenas evidentes, como são aceites e assumidas pelos dois.
Nada disto inviabiliza nem contraria a ideia de que os clubes e os treinadores não devem ter e que não assumam preferência(s) por um determinado modelo de gestão ou uma ideia de jogo específica, desenvolvendo a partir daí o processo que alimentará essas escolhas e os tornará mais preparados e mais fortes. Pelo contrário, quem não define claramente aquilo em que quer ser bom e, por arrasto, não trabalha para melhorar e crescer com base nessas escolhas (porque não as fez) dificilmente será bom em alguma coisa, pelo menos de maneira significativa: isto é, ao ponto de esse vazio (de ideias, de convicções) ser a razão e a causa de vitórias e derrotas.
Acredito cada vez mais que, também no futebol, não é possível ser-se o melhor, nem sequer (muito) competente, em tudo, dentro e fora do campo. Mas é precisamente devido a essa impossibilidade que é tão importante definir aquilo em que se quer ser bom, forte e superior aos outros. Perder porque se é muito forte numas coisas e por isso não tão forte noutras é uma coisa boa. Não saber por que se ganha ou perde é o pior de tudo.