No futebol, ainda se confia mais em treinadores que “pensam futebol 24 horas por dia” e no que “dorme pouco”, como se isso tivesse algum proveito com sustentação real, e em futebolistas que se dedicam em exclusivo – ou seja, quando não estão a jogar nem a treinar, não fazem mais nada – à atividade. Acredito que o profissionalismo é levado a um extremo que não traz vantagens comprovadamente garantidas e é medido por padrões duvidosos, que em nada asseguram um trabalho mais bem feito, com melhores resultados ou mais boas decisões. A quantidade de tempo que se trabalha é mais importante do que a qualidade. Vá lá saber-se porquê.
Parece que só há duas opções: ou trabalha; ou descansa e simplesmente não faz nada que, supostamente, lhe tire a concentração e o foco do jogo. Apesar de isto também ainda ser válido para treinadores, é com os jogadores como assunto que vale a pena refletir sobre esse preconceito. Afinal, são eles quem tem mais tempo livre, menos trabalho e também menos responsabilidades.
Vários treinadores – mais noutras modalidades que não o futebol e principalmente no desporto americano, de entre os que que mais acompanho –, também pelas exigências cada vez maiores que a função requer, já se aperceberam da importância de ir buscar conhecimento a outros lados, de ler, de explorar áreas diferentes, de falar com pessoas aparentemente sem nada que ver com o futebol ou desligar simplesmente: Pep Guardiola é um leitor voraz, Julian Nagelsmann é fã de desportos radicais e durante o ano sabático Thomas Tuchel visitou universidades para falar e consultar professores de diferentes disciplinas.
Por outro lado, alguns dos empresários, CEO’s, políticos e empreendedores mais destacados do Mundo também salientam a importância, a necessidade até, de encontrarem e alimentarem outros interesses, embora também com a perspetiva de com isso se desenvolverem e melhorarem nas respetivas atividades.
Ou seja, há a convicção de que essa preocupação de ir em busca de mais informação, de beber de outras fontes, de alargar os horizontes, de saber mais de mais coisas, ajuda a trabalhar melhor, aumentar o rendimento e a ser um profissional mais capaz. Não pode o futebolista também beneficiar com essa forma de estar e de atuar?
Muitos estudos, artigos e testemunhos destacam a importância de ter outros interesses e ocupações, para além da atividade profissional. No futebol de alta competição, no entanto, isso não só é difícil, como até é visto com desconfiança. Erradamente?
Mantenhamo-nos em estudos, textos cientificamente sólidos e exemplos práticos. Se há quem defenda a especialização precoce e a prática deliberada desde muito cedo como a base decisiva para uma carreira de sucesso, seja no que for, também há quem considere que a formação deve ser o mais diversificada possível no início (praticar vários desportos, por exemplo) e a especialização deve vir mais tarde, porque viver e experienciar contextos diferentes melhora as qualidades, físicas e mentais, que mais tarde serão importantes, independentemente da modalidade escolhida para seguir em frente. Eu estou tentando a inclinar-me para esta última teoria.
Neste sentido, há pontos em aberto: a especialização, mesmo tardia, é importante, claro, mas é impeditiva de ser conciliada com outras atividades e interesses? Ou será que a diversidade de experiências, atividades e interesses, se ajustada ao profissionalismo exigido e exigente, não continuará a ter mais-valias associadas?
Os exemplos acima mencionados permitem responder taxativamente que sim à segunda pergunta. Mas se a resposta for não, por outro lado é difícil acreditar que ter outros interesses fará algum mal e prejudicará o rendimento desportivo e diminuirá a qualidade como futebolista. Se a pessoa for melhor, mais conhecedora, menos fechada ao que o rodeia, mais presente e com um pensamento lateral mais vincado, não será um jogador melhor? Ou, no mínimo, não terá mais possibilidades de ser um jogador e, não menos importante, um colega de equipa mais valioso?
Ver outras coisas, ler, estudar, ir para a faculdade, tirar cursos, conversar com pessoas de outras áreas, estar aberto a experiências pouco futebolísticas mas com forte cariz pessoal e humano, vivê-las na plenitude, pensar sobre elas e aprender com elas, meter-se noutros contextos e explorá-los… Se há desenvolvimento pessoal e intelectual, há maiores possibilidades de existir mais perspetiva, de se ter outra visão das coisas, mais ginástica mental, mais informação, outras maneiras de olhar para o sucesso e para o insucesso, formas melhores de lidar com a pressão, com colegas de equipa e treinadores; há mais relativização, olha-se para os resultados de outra maneira, a capacidade de reação é melhorada. As vantagens são muitas.
Ter outros interesses, conciliá-los e, se possível, aproveitá-los com o futebol, enriquece jogadores, treinadores e, consequentemente, enriquece as equipas. E numa altura em que o profissionalismo é tão exacerbado, tão empolado, tão quadrado e pouco flexível, faz sentido refletir até que ponto isso não poderá estar a privar futebolistas, e não só, de ferramentas interessantes e qualidades importantes que os tornem melhores, mais preparados e mais competentes.
Também os clubes devem informar-se e tentar perceber se não podem tirar proveitos, desportivos e financeiros, em mudar a forma de pensar e em dar liberdade aos respetivos jogadores para que façam outras coisas, conciliem o futebol, sempre dentro do possível, com outras atividades e procurem fora do campo outros argumentos que os ajudem no treino, no jogo e no balneário.
Muitas das personalidades mais importantes de todos os tempos, nas mais diversas áreas, como Leonardo Da Vinci, Benjamin Franklim, Isaac Newton, Goethe ou Platão, tinham interesses variados, estudavam várias matérias e discutiam sobre assuntos aparentemente inconciliáveis. E acredita-se que essa era uma das características que os tornavam tão especiais e tão bons no que faziam ao ponto de ainda hoje, séculos e séculos depois, serem referências de rendimento. O futebol será assim tão diferente?