O futebol de rua que já não volta

17 de Dezembro, 2020 - 4 mins de leitura

As pessoas, e consequentemente os jogadores, também são o resultado das vivências, das experiências, dos estilos de vida que acumulam ao longo da vida. Tudo o que fazem tem influência nelas e naquilo que podem vir a tornar-se, tal como tudo o que deixam de fazer, de sentir, de viver e de apreender. Um todo, seja ele qual for (uma pessoa, uma comunidade, uma organização, um país) faz-se do que existe e do que não existe: o que não vivemos, paradoxalmente, acaba por nos influenciar porque não podemos ser o que não vivemos e sentimos.

Vem isto a propósito do futebol de rua e de todo um grito, cada vez mais sonoro e uníssono, que pede o regresso desta prática (desta experiência) para ajudar na formação de potenciais jogadores de futebol. Tem toda a lógica, mas parece-me ser necessário fazer um ponto de ordem: mesmo que ele volte, o futebol de rua que se segue nunca será igual ao que foi e algumas das coisas mais importantes perderam-se pelo caminho.

É praticamente unânime considerar o futebol de rua uma mais-valia no desenvolvimento motor e técnico de todos os que o praticam regularmente, mas jogar à bola na rua tinha outras diversas vantagens que vão muito além da evolução física, das capacidades de raciocinar, executar e agir que o jogo exige. O futebol de rua era a rua. Era uma escola de desenvolvimento pessoal, uma formação intensiva do ponto de vista social e humano, era o vínculo que unia vontades diferentes, realidades diferentes, que criava relacionamentos fortes, estimulava o convívio, a competição saudável e o trabalho em equipa. Exigia decisões constantes, pedia soluções criativas, no jogo em sim, mas principalmente fora dele. O futebol de rua moldava personalidades.

O futebol de rua era o jogar à vontade, sem constrangimentos e a toda a hora, sem dedos apontados ao mínimo erro. Era perder para os melhores amigos, aceitar a derrota, mas voltar no dia seguinte todo motivado para reagir. O futebol de rua era aprender com os erros, cada um por si e sem ninguém (tentar) ensinar o que se devia fazer na situação X ou no momento Y. O futebol de rua era jogar livremente, sem estar amarrado às indicações de alguém. O futebol de rua era improvisar, encarar os problemas e resolvê-los. Era um desafio reiterados, a vários níveis. O futebol de rua era tudo isto e muito mais. E como nada disso volta, tal significa perdas importantes.

O futebol de rua é importante para o desenvolvimento futebolístico, mas forma(va) pessoas antes de formar jogadores.

Mesmo que o futebol de rua volte, ele nunca será tão diferenciador como foi. Nem sequer tão formador. Jogar futebol de rua num clube não obriga a improvisar balizas, não exige um pensamento coletivo para se idealizarem formas de evitar as interrupções dos carros e das pessoas a passar; não faz com que os miúdos resolvam os problemas entre eles, que se zanguem e que façam as pazes logo a seguir, sem interferências. Os ensinamentos vêm com as experiências acumuladas. Pelo contrário, este novo futebol de rua que se avizinha vai ter regras, pessoas a supervisionar, organizações interessadas em aproveitar aspetos específicos desse contexto e não a deixarem as coisas fluírem normalmente, sem pressas. Na sociedade das correrias, da falta de tempo, é o que acontece. E o futebol de rua não é assim.

A sociedade evoluiu, o futebol evoluiu, o jogo evoluiu, a vida mudou, as pessoas mudaram. Portanto, as experiências e as vivências também mudam e mudarão. O futebol de rua que desenvolve tecnicamente e fisicamente pode e deve voltar a ser explorado e enquadrado na formação. Mas será sempre incompleto.

Preencher esse vazio, tudo o que se perdeu com o tempo e que era apreendido, muitas vezes de uma maneira não consciente, a jogar na rua (mesmo na rua) e a improvisar campos de futebol (bolas até) dificilmente será conseguido com o futebol de rua que se pensa para os dias de hoje. Demasiadas vezes se desvaloriza a importância do que nos rodeia e da sociedade na construção de carácteres e na formação de atletas, neste caso de jogadores de futebol. Mas é essa parte de nós, esse contexto, que, de uma maneira muito significativa, facilita ou dificulta caminhos.

Há uns tempos, numa conferência da ProScout, Luís Campos indicou que o mercado do futuro é o africano. Invocou razões financeiras e futebolísticas, claro, mas também realçou o contexto social como uma mais-valia no desenvolvimento de pessoas capazes de jogarem futebol ao mais alto-nível. Porquê? Porque as dificuldades despertam características e qualidades que as facilidades não conseguem. Porque a falta de campos de futebol, de balneários e de treinadores obriga a improvisar, a resolver problemas, a puxar pela cabeça para encontrar as melhores soluções, a promover relacionamentos e ligações, a trabalhar em nome de um bem comum e não apenas por cada um.

O que torna o futebol de rua especial não é o jogo (o futebol) em si – esse pode ser mais ou menos replicado num campo de futebol, num pavilhão –, mas sim o facto de ser jogado na rua, em condições e contextos muitos especiais que exigem comportamentos, ações e tomadas de decisão apenas possíveis na tal rua. E esse perdeu-se. Há um futebol de rua que já não volta.

Vasco Samouco