O conservadorismo no futebol explicado por Gandhi e Wittgenstein

10 de Março, 2022 - 4 mins de leitura

Wittgenstein: “Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo.”

O futebol é tão especial, atrativo e apaixonante também porque não tem fórmulas e metodologias infalíveis, capazes de garantir vitórias de antemão, ou, por outro lado, frágeis e capazes de antecipar derrotas. No futebol, ganha-se (e perde-se) devido à tática, à estratégia e à técnica, mas também devido a questões mentais e anímicas, físicas, aleatórias ou, simplesmente, porque sim. É isso que faz dele imprevisível e que torna possível ter sucesso de várias maneiras, a jogar e a pensar de diversas formas. E, no entanto, o futebol tem atrelado um conservadorismo que, exatamente pelo que se menciona atrás, não pode ter racionalidade nem lógica.

Ideias ditas e repetidas ao longo dos tempos, quase desde a génese do jogo, consolidaram-se como “verdades” e mantêm-se como explicações para os resultados e para as decisões tomadas. Esta realidade já foi mais evidente, é certo, mas ainda está bem presente, com a repetição, às vezes exaustiva, das tais “verdades” que, por assim serem vistas, condicionam, em grande medida, tudo à volta. O que se diz, repete e ouve tem influência significativa no que se pensa e, consequentemente, no que se faz. E esse facto é bastante desvalorizado, tendo em conta o impacto que pode ter.

Gandhi: “Cuide os seus pensamentos, porque se transformarão em suas palavras. Cuide as suas palavras, porque se transformarão em seus atos. Cuide os seus atos, porque se transformarão em seus hábitos. Cuide os seus hábitos, porque se transformarão em seus destino.”

Os mundos das pessoas que andam no futebol, dos clubes, das equipas e dos projetos dependem, em primeira instância, da linguagem que fazem parte deles, das palavras e das frases que, de forma consciente e/ou não-consciente, vão orientar e determinar pensamentos, decisões e comportamentos. Remetendo-nos às tais “verdades”, dificilmente pensaremos e agiremos de maneira diferente; é quando paramos para pensar sobre elas, quando duvidamos e as contestamos que se abrem oportunidades que a linguagem não deixava discernir, abrindo, desse modo, as portas às visões e às ideias disruptivas.

Não é preciso andar-se muito atento para conhecer as “verdades” do futebol e como elas, ao tornarem-se praticamente orgânicas, ditam análises, decisões, formas de estar e moldam contextos. Não faltam exemplos, como estes:

“O jogo é dos jogadores” -> São os jogadores que jogam, mas o que eles jogam e como jogam depende de uma série de aspetos e de pessoas que determinam, decisivamente, o que vai ser o jogo. Assim, os jogadores jogam, sim, mas o jogo não é nem pode ser só deles.

“Os jogos ganham-se no campo” -> O que se passa nos 90 minutos é consequência de horas e horas de treino, análise, comportamentos, cuidados, estilos de vida, relações extra-campo, etc, etc… Os jogos ganham-se, ou começam a ganhar-se, fora do campo.

“Os bons jogadores não precisam de adaptação” -> A falta de tempo é um dos problemas do futebol atual e não interfere apenas com o trabalho dos treinadores. Hoje, contratam-se jogadores e espera-se rendimento imediato, algo sustentando em falácias como “o futebol é igual em todo lado”. Há que chegar e jogar bem imediatamente, sob pena de se ser colocado na prateleira, encostado e, por fim, dispensado. O futebol até pode ser igual em todo o lado (se resumirmos o futebol a ser um jogo de 11 contra 11 com uma bola pelo meio), mas a vida, a comida, a sociedade, os hábitos, as pessoas, os clubes, os treinadores, os treinos, as ideias de jogo, não.

“A classificação não mente” -> Rasmus Ankersen explica melhor do que eu.

“O próximo jogo é o mais importante” -> Se desportivamente esta ideia até pode ser aceitável, a um nível mais profundo ela acarreta problemas importantes, tanto dentro como fora do campo. É por se pensar assim, por se olhar apenas para o agora sem ter em conta o passado e sem pensar o futuro que se tomam decisões precipitadas.

“Em equipa que ganha não se mexe” -> É recorrente pensar-se que quando se ganha está tudo bem. Que não são necessárias mudanças e melhorias. Quando se ganha, há muito menos predisposição e abertura para aceitar que se errou e falhou, porque o resultado, supostamente, diz o contrário, mas os erros e as falhas existem. Às vezes, é preciso mudar para continuar a ganhar.

Gandhi e Wittgenstein falaram da vida e da filosofia, mas também estavam a falar de futebol, ou não fosse este uma forma de vida e, muitas vezes, um confronto/debate filosófico e ideológico. Tal como a vida e a filosofia, também o futebol não tem verdades absolutas, logo exige reflexão e dúvida constantes. A discussão é aberta, os problemas nunca têm uma só resposta, mas várias e diferentes soluções possíveis, e a linguagem apresenta-se como fator essencial para torná-la (a discussão) produtiva e para resolver os problemas da melhor maneira. O que se diz e repete torna-se os pensamentos e o que se pensa será dito, repetido e incorporado, numa bola de neve que tem como fim influenciar ações, comportamentos, decisões e destinos. “Verdades” no futebol? Se existem é para serem contrariadas.

Vasco Samouco