Estamos mesmo a formar atletas mais preparados para a alta competição, para uma carreira exigente e desafiadora e para uma existência previsivelmente difícil? Que técnica, tática e fisicamente têm tudo para serem cada vez melhores, não há dúvidas, mas isso significa que estamos a fazer deles mais fortes, quase moralmente capazes de terem e manterem uma carreira relevante? Ou, pelo contrário, com tudo isso estamos é a facilitar-lhes demasiado a vida e a enfraquecê-los, ignorando que, na maioria dos casos, o que os espera é tudo menos fácil e longe do futebol?
Com tantas facilidades – que ainda se estendem ao contexto social –, a lógica (e a história desportiva e social) dita que se está a tornar os desportistas (e as pessoas) de amanhã mais fracos, menos disponíveis para superar obstáculos, para aguentar as dificuldades, para reagir a maus resultados e a situações desfavoráveis e para se superarem em contextos adversos.
Estamos, por exemplo, a construir futebolistas para quem estar em balneários pequenos, sem ar-condicionado ou água quente e jogar em campos em mau estado serão fatores limitadores.
Nunca o investimento em condições materiais e humanas viradas para a formação desportiva foi tão grande: as infra-estruturas são melhores do que alguma vez foram, a tecnologia minimiza problemas, resolve dificuldades e facilita a aprendizagem e os treinadores são cada vez mais e mais conhecedores: há, neste sentido, todo um contexto pouco desafiador já edificado e em constante evolução. É preocupante.
Há também uma preocupação desmedida e até incompreensível em ter as melhores condições, as melhores bolas, os melhores campos acima de tudo o resto. E é preciso parar para pensar, refletir e clarificar até que ponto isso é verdadeiramente indispensável para tornar os futebolistas mais competentes e melhor preparados. Será?
Ao querer dar-lhes tanto, não estaremos a ajudá-los menos? Queremos que joguem sempre em campos bons, mas será isso o ideal? E os balneários não serão bons demais? Como se alimentam características como a resiliência, a resistências às adversidades, a predisposição para reagir ao desconforto, a humildade, se tudo o que se faz é no sentido de facilitar, proporcionar o melhor, garantir conforto e relativizar os erros? Talvez se esteja a dar-lhes mais do que aquilo que eles precisem. E mereçam.
As academias multiplicam-se, os clubes mais fortes, mais ricos e com melhores condições contratam jogadores cada vez mais novos, logo esses miúdos serão expostos desde muito cedo aos tais contextos favoráveis, às tais estruturas inacreditavelmente sofisticadas, aos relvados perfeitos, aos balneários imaculados, à vida facilitada por colaboradores contratados para isso mesmo. Passam anos a viver assim, nesse ‘mundinho perfeito’ e habituam-se ao conforto, esquecendo-se (eles e quem com eles trabalha) que, mais tarde, a grande maioria deles terá que (sobre)viver em realidades muito mais humildes, mais exigentes e menos confortáveis.
Já para não falar do dinheiro que os jogadores jovens ganham cada vez mais cedo, em quantidades cada vez mais absurdas. É fácil perder o controlo, perder a noção da realidade, esquecer princípios e valores indispensáveis à construção de uma personalidade ajustada à carreira que os espera, diminuir os esforços, deixar de ouvir, sentirem-se superiores e mais do que realmente são.
Hoje, os jogadores têm muita coisa demasiado cedo. Dinheiro, boas roupas, bons carros, conforto, atenção, reconhecimento, respeito, pressão desmedida, responsabilidades, jogam em grandes clubes cedo demais, boa parte deles ganha muitos jogos e perde poucos. São recompensas e consequências exageradas para quem fez tão pouco para consegui-las. Mas não é culpa deles.
Ainda por cima, esta realidade facilitadora também nos remete para o contexto social, o segundo dos três pontos decisivos na formação de desportistas (o terceiro é o contexto familiar, também ele a precisar de reflexão profunda).
É interessante verificar que hoje vive-se melhor em relação a qualquer outra época da humanidade, mas estes também são tempos em que mais pessoas estão doentes, em que as doenças crónicas dispararam e a fragilidade mental nunca esteve tão exposta.
Têm (temos) tudo à mão de semear. A vida está facilitada como nunca esteve e isso, comprovada e paradoxalmente, enfraquece.
E se o atual contexto tem vantagens impagáveis, inegociáveis e das quais não podemos nem devemos abdicar, por outro lado é importante tentar perceber e estabelecer com critério a linha para além da qual esses contextos podem tornar-se limitadores ao potencial humano.
Não passou tanto tempo assim desde que as condições de vida da maioria da população eram, quase sempre, miseráveis. Contudo, esse contexto tinha vantagens: obrigava as pessoas a procurar soluções, a sacrificarem-se, a esforçarem-se; tornava-as mais resilientes, mais fortes, mais imaginativas, mais destemidas. A evolução e o desenvolvimento pessoal são mais facilmente alimentados nesses contextos.
Por isso, e se não podem mudar o contexto social, cabe aos clubes pensar em formas de ajustar o cenário desportivo, torná-lo mais desafiador, desconfortável.
A solução não tem que ser radical. Não é preciso ir do 80 ao 8 e privar os jovens e os jogadores de todas as ferramentas que realmente os melhorem futebolisticamente. Ajudá-los a evoluir técnica, tática e fisicamente é e será sempre fundamental, mas que isso seja equilibrado por outros desafios que lhes tirem conforto e os exponham a realidades diversificadas, mais exigentes, mais duras e mais condizentes com o processo de aprendizagem e evolução em que devem estar inseridos.