Entrevista #11: Francisco Fardilha | A indefinição do Talento, os problemas das Academias e os exemplos Mbappé e Bernardo Silva

22 de Abril, 2021 - 5 mins de leitura

Francisco Fardilha é especialista em desenvolvimento de talento no futebol, investigador na área da criatividade e autor de vários trabalhos científicos relacionados com formação de futebolistas. Até março, foi coordenador-adjunto da Academia do Lille, atual líder do campeonato de França.

Nesta conversa, e entre outras coisas, são abordados assuntos relacionados com talento e como a dificuldade em defini-lo prejudica avaliações e decisões, fala-se do impacto das academias na formação dos futebolistas e os principais erros que são cometidos nesses ambientes, refere-se as consequências negativas de os clubes contratarem cada vez mais jovens jogadores em idades cada vez mais precoces, salienta-se a importância de “ter uma mente aberta e de pensar pela própria cabeça” e o perigo do “analfabetismo emocional”, e sugere-se que os craques Mbappé e Bernardo Silva deviam fazer repensar o processo formativo.

“Quando se contratam jogadores jovens de países, de continentes e até de cidades diferentes, o que se está a fazer é tirar uma planta do seu habitat natural e tentar replantá-la noutro tipo de solo, com outras condições climatéricas. Logo há um grande perigo de ela não crescer. Por isso é tão importante prestar muita atenção a cada caso e ter pessoas competentes e ferramentas para isso. Às vezes, até a comida pode ser um fator de desestabilização”.

PESSOAS REFERENCIADAS: Luís Campos, Luís Norton de Matos, Joe Baker, Anders Ericsson, Carol Dweck, Kristjaan Speakman, Cal Newport, Nir Eyal, Jorge Maciel e Júlio Garganta

A entrevista completa está disponível no YouTube e também pode ser ouvida através do podcast ‘Efeito BorboletRa’.

Abaixo, deixou-lhe algumas das passagens da conversa.


O QUE É TALENTO?

“Dependendo do jogar, do país ou da cultura, o talento vai variar. Hoje em dia, o grande problema é que mais do que talento, o que os clubes procuram é avaliar o potencial e ainda não há ferramentas, cientificamente comprovadas, que permitam isso porque há muita coisa que interfere no desenvolvimento do talento. Quando, desde logo, há problemas em definir talento, por consequência também se vai ter muitos problemas em avaliá-lo”.

“Todos nascemos com predisposições. A questão, depois, é se nos dão as ferramentas para exprimirmos essas predisposições. Se o ambiente à nossa volta não permitir que expressemos esse potencial… Imaginemos que o Neymar, aos 10 anos, ia trabalhar para uma fábrica. Não ia ser capaz de exprimir o talento que tinha, mesmo que fosse o maior do Mundo. Quantos talentos não expressos haverá por aí?”.

“O talento não é linear. O mesmo jogador é diferente aos sete, aos 10, aos 13 ou aos 16 anos. São as experiências que dizem se um jogador está pronto ou não, até um diretor desportivo pode mudar a carreira de um jogador (…) Também é importante definir quais os indicadores que se usam para valorizar o talento. Esta tendência de que há critérios universais para definir talento fazem algum sentido, mas há outros critérios que vão ser sempre variáveis”.

ACADEMIAS: PROBLEMAS E DESVANTAGENS

“Quando se contratam jogadores jovens de países ou até continentes diferentes, o que se está a fazer é tirar uma planta do seu habitat natural e tentar replantá-la noutro tipo de solo, com outras condições climatéricas. Logo há um grande perigo de ela não crescer. Por isso é tão importante prestar muita atenção a cada caso e ter pessoas competentes e ferramentas para isso. Às vezes, até a comida pode ser um fator de desestabilização”.

“As boas condições e as infra-estruturas excelentes das academias podem gerar a Síndrome do Impostor e criar uma pressão acrescida aos jogadores, ao ponto de alguns pensarem que não merecem isso e que não são bons o suficiente para estar lá. Se se pode ter e proporcionar boas condições, porque não? No entanto, já há estudos científicos que mostram que crescer a jogar em diferentes superfícies, com diferentes materiais, etc, dá mais possibilidades de se ser criativo”.

“A maior crítica que eu faço é o facto de cada vez mais os jogadores viverem dentro da academia. Isso faz com que as perceções deles do Mundo e da realidade sejam, exclusivamente, da academia. Antes, ainda saíam para ir à escola, agora até vão à escola dentro da academia. Ou seja, as únicas convivências dos jogadores – os amigos que têm, a vida que levam – gravitam em torno da academia (…) Uma das queixas dos coordenadores (de formação) é que há menos jogadores maus, mas também há menos jogadores diferenciados. Ora, se se for buscar um miúdo com 10 anos para uma academia e a vida dele, a partir daí, se resumir às mesmas pessoas e às mesmas experiências todos os dias, de certa forma está-se a formar personalidades quadradas”.

“O caso que eu conheço melhor no que diz respeito a jogador criativo de topo é o Bernardo Silva. Podemos dizer que nasceu com um potencial enorme, mas há inúmeras questões ao longo da vida dele que a ajudaram. Por exemplo, mãe é professora de história de arte e uma pessoa extremamente liberal, que o deixava jogar à bola dentro de casa. Mas ele também andou num colégio que se foca muito na cidadania e na criatividade, praticou várias modalidades… Ou seja, o Bernardo teve muitas experiências fora do contexto academia que o ajudaram”.

FORMAR OU FORMATAR

“Se se olhar para a atual seleção principal e a atual seleção sub-21 de França, a maior parte dos jogadores (se bem me lembro, era à volta dos 85%) não integrou uma academia até aos 14 anos. E, sem querer entrar muito no debate formação-formatação, isso é algo que nos deve fazer pensar. O Mbappé, por exemplo, jogou numa equipa dos subúrbios de Paris até muito tarde. E eu pergunto-me se esse tipo de percurso não será mais interessante no sentido de permitirem aos jogadores desenvolverem ferramentas que não conseguem desenvolver quando têm um analista/treinador a decidir por eles”.

“Em contextos de formação, a monotorização permanente pode ter um impacto importante na capacidade do jogador em correr riscos. Para o meu doutoramento, visitei dez academias internacionais e falei com miúdos que me diziam que era no recreio da escola ou nos ringues nas ruas que eles experimentavam coisas novas porque na academia tinham receio (um receio muitas vezes auto-imposto) de errar”.

Vasco Samouco