No final do século XIX, Eça de Queiroz escreveu “A Cidade e as Serras” para se insurgir contra o “excesso de Civilização”, contestar o que era visto como progresso e questionar a vida que levam e a que aspiram aqueles que, materialmente falando, têm tudo e podem comprar tudo, quais zombies mergulhados num tédio atroz. É dele a frase que dá título a este ensaio, resumindo dessa forma a existência de Jacinto, o personagem principal que passa os dias a bocejar, amorfo, aborrecido e a arrastar-se no meio das últimas grandes invenções, de banquetes, de superficialidade e futilidade tão vergonhosas quanto confrangedoras, arreliado e melindrado por insignificâncias, incapaz de desfrutar de tantas regalias e de dar o mínimo valor ao que tem ao ponto de se começar a odiar e a detestar tudo o que o rodeia, quase até ao desespero.
O futebol já está muito “jacíntico” e, pior, querem “jacintá-lo” ainda mais; é preciso travar essas maldosas, duvidosas e homicidas intenções.
Axel Torres: “O futebol não nasceu como uma indústria nem como um espetáculo. Não se começou a jogar futebol para entreter as pessoas e isso tem sido esquecido”.
O futebol pode ser muita coisa. E pode ser muita coisa ao mesmo tempo, servir vários propósitos em simultâneo, sem ser preciso fazer grandes cedências, grandes escolhas e tomar grandes decisões. Mas o que está em marcha é um plano — subtil, impercetível quase, mas bem orquestrado e oleado — que o quer reduzir à existência mais pobre, mais desoladora e mais retrógrada. Que o quer cingir às mais perigosas e tristes misérias: espiritual, intelectual, humana. Querem resumi-lo à definição de espetáculo, fazer dele entretenimento e metê-lo na mesma prateleira de outras tantas atividades insignificantes e, ainda por cima, estupidificantes. Já não são só os jogos que têm que ser entretidos; estar no estádio também tem que ser entretido, as redes sociais têm que ter conteúdo divertido, os programas a ele associados devem ter divertimento, pompa e circunstância, humor, drama e afins. Enfim, tudo deve ser feito para tornar “a experiência dos adeptos”, todos os dias, mais básica, mais inócua e o mais ocupada possível. Querem atrair adeptos pelas piores razões. Não está mal, nem sequer é errado, ver o futebol como um espetáculo; o problema é reduzi-lo a isso ou, num cenário menos drástico mas na mesma dispensável e medonho, colocar esse aspeto acima de outros. Os perigos desta forma de pensar não estão a ser devidamente tidos em conta, analisados nem ponderados. A alguns não dá jeito; outros mantêm-se adormecidos, letárgicos, e quando acordarem já pode ser tarde.
Olhando à nossa volta, percebemos o mal que tudo aquilo que é pensado para entreter está a causar. O alheamento, o vazio, a disfunção social, o individualismo mais nefasto, a curiosidade pelo superficial, o desinteresse pelo mais profundo, a resignação, a ausência de valores, a falta de tempo, os estímulos excessivos e por aí fora. Em “A Sociedade do Espectáculo”, Guy Debord defende que o espetáculo “empobrece a verdadeira qualidade da vida”, levou a que “as relações entre as mercadorias suplantassem os laços que unem as pessoas” e resultou na “identificação passiva, em detrimento da genuína actividade”. Tudo isso pode perfeitamente ser transportado para o futebol. Está a ser, aliás.
Num ensaio célebre, profético e brilhante, escrito em 1990, intitulado “E Enibus Pluram, a Televisão e a Ficção Americana”, David Foster Wallace debruça-se sobre as consequências do entretenimento televisivo e, a certa altura, fala numa “paralisia provocada pelo estímulo excessivo de demasiadas opções”. Soa familiar, não? No entanto, e apesar de o futebol já nos entrar pelos olhos dentro quase todos os dias e a quase todas as horas, aqueles que estão por detrás do “projeto” de o minimizar o mais possível querem mais, dizem que é pouco; falam por eles recorrendo a mentiras e a deturpações, e dão conta dos seus planos geniais, fazendo-se passar por salvadores. Deles mesmos, só se for. Curiosamente, todos partilham traços que nos deviam fazer duvidar das suas “boas intenções”: têm muito dinheiro, estão em lugares de grande poder, lideram os clubes mais ricos e mais poderosos, contribuíram para deixar centenas de clubes sem chão e sem futuro, tornaram o futebol inacessível e inalcançável para os mais pobres. Etc, etc.
Gerard Piqué: “Todos os desportos têm de ir para o entretenimento. As novas gerações querem mudanças, não querem jogos de 90 minutos. Querem coisas muito mais curtas e muito mais emocionantes”.
Mas não admira que queiram levar o futebol para caminhos obscuros e que o afastam (ainda mais) das suas raízes e de alguns dos seus propósitos mais nobres. Claro que nos querem empanturrar de jogos. Quantos mais jogos, mais competições, mais competitividade houver, mais entretidos, mais ocupados e mais distraídos andaremos. E é assim, paradoxalmente, que nos distanciamos, fartamos e desinteressamos, pelo menos das questões mais profundas, que merecem mais reflexão, discussão e ponderação, resignando-nos ao mais banal, imediato e superficial. Querem tirar-nos a força, a vontade, a inquietação, o espírito crítico. E, aos poucos, estão a conseguir. Para os “investidores” que caem de paraquedas no futebol e que se fazem donos dos clubes pelo simples facto de terem dinheiro, isto é ouro. Ou não é verdade que quanto mais fracos e mais adormecidos estiverem os adeptos, mais básicos serão na sua exigência para com o clube que defendem, logo darão rédea solta aos proprietários para fazerem o que querem, sem contestação, sem oposição, sem sequer terem que explicar o que fazem, como fazem e para quê?
O que se está a tentar é fazer dos adeptos meros fantoches, bonecos acríticos, de trapos, marionetas manobradas como der mais jeito. O que interessa é que sejam muitos, que consumam muito, que aceitem, sem fazer barulho, pagar balúrdios por camisolas, bilhetes, por assinaturas de canais de televisão, que simplesmente e de preferência se limitem a contribuir, cega e inconscientemente, para enriquecer a “indústria” e quem a gere, recebendo “entretenimento”. Perder tempo e perder dinheiro para ser entretido não me parece uma decisão aceitável e vantajosa, muito menos uma troca justa.
Contudo, este provável panorama (se não for travado) incorre em perigos e deve levantar questões que merecem análise, reflexão e discussão. Porque há sempre a tendência para só ver e exultar as vantagens, esquecendo, ignorando e, às vezes, escondendo as desvantagens. Por exemplo: Que tipo de adepto queremos ser? Que tipo de adeptos queremos que o nosso clube tenha? Que tipo de adeptos é que os clubes querem? Uns meros consumidores, desinteressados e desligados? Ou pessoas que se envolvam, que estejam atentas, que se preocupem, que votem, que não deixem à vontade quem manda e gere, que acrescentem valor, que partilhem valores? Se não é a mais importante, esta é uma das conversas mais importantes e mais urgentes que se deve ter quando se quiser perspetivar o futebol a médio e a longo-prazo.
Até pode ser que, apesar de tudo e tendo em conta pontos de vista meramente numéricos, sejam eles a quantidade de espectadores ou de ganhos financeiros, este “futebol jacíntico” agrade e seja apetecível e proveitoso aos clubes maiores, mais vistos e mais populares. O problema, como sempre, são os outros, os que ficam com as sobras (na melhor das hipóteses) e disputam as migalhas e os restos que os glutões deixam. Um clube pequeno que ponha o entretenimento acima de tudo não tem hipótese de sobreviver porque não consegue competir com o entretenimento proporcionado por aqueles que têm os melhores “entertainers”, os mais bonitos, os mais bem vestidos, que têm os palcos maiores, a cobertura mediática quase total, toda a publicidade, todo o poder e todo o dinheiro. É um rumo condenado a acentuar, ainda mais, a crise e as dificuldades no resto da pirâmide, salvando-se, apenas — e propositadamente, diria — o topo dos topos.
É essencial, portanto, regressar a Guy Debord e ter a noção de que aquele panorama triste e lamentável que ele, em grande medida, adivinhou e pontapeou em cheio pode muito bem ser o que nos reserva o futebol do futuro se não forem tomadas as devidas e necessárias precauções para ele não cair na ratoeira que lhe está a ser preparada por quem o quer enjaular, domesticar e tirar-lhe as forças até o condenar a uma existência ajoelhada, sem capacidade para levantar as pernas, abrir os braços e protestar.
Alejandro Requeijo: “Se se tirar essas raízes de vinculação e de pertença, estamos a expor o futebol, porque é muito provável que, no futuro, surjam espetáculos mais intensos, mais baratos e mais alinhados com as novas formas de consumo. Ao apresentá-lo como um mero espetáculo, estamos a deixar de fora muitos aspetos que o distinguem”.
O futebol, para já, vai resistindo e dando luta. Mas o perigo é real. O ponto principal é que nem o futebol precisa de adeptos que queiram (só) ser entretidos nem os que queiram (só) ser entretidos precisam do futebol. O futebol é recreativo, é didático, é lúdico, é comunitário, é formativo, é igualitário, tem propósitos, intenções e objetivos que vão para lá dos campos e dos resultados, pode fazer (e faz) tanto por tantos e em vários níveis, desportivos e sociais. E precisa de pessoas que o mantenha assim. Também é um espetáculo (ou algo do género), sim, mas aqueles que o querem reduzir a essa paupérrima vida, livre de propósitos, pelo menos dignos e significativos, e que dizem que querem evitar-lhe a morte, querem, isso sim, evitar a morte do futebolzinho supérfluo e pindérico deles, que, tenhamos isso bem presente, não é o futebol da larga maioria. O futebol pode e deve tentar encontrar formas de se tornar mais apetecível, mais dinâmico e versátil, visualmente mais atrativo e essas coisas todas, mas que isso não implique vender a alma ao diabo e arrancar-lhe a (pouca) nobreza que ainda lhe resta.
O futebol não precisa de mais dinheiro. Pelo contrário, precisa de mais responsabilidade, de ser mais contido, de ser mais sério, de ser mais humanizado. Num Mundo cada vez mais desumanizado, atordoado por tantas distrações, obeso e mentalmente fragilizado por tantos excessos desnecessários, o caminho não pode ser desumanizá-lo ainda mais, justificando-se essa escolha com um vazio, irresponsável e mentiroso “é isso que as pessoas querem”. A triste realidade é que nós sabemos cada vez menos o que queremos.
A meio do “Cidade e as Serras”, um episódio obriga Jacinto a deixar Paris e a regressar à aldeia onde nasceu em Portugal. A sua intenção é transferir o luxo de Paris para Tormes, mas uma série de “infelicidades” não lhe deixa alternativa que não seja viver modestamente, sem luxos, mas com o suficiente para uma vida regradamente confortável. Jacinto deixa de se aborrecer e de maldizer o mundo, os desafios da serra acordam-no, arrebitam-no e dão-lhe fôlego e cor à pele. Perde a corcunda, ergue-se, levanta a cabeça e logo consegue ver para além do próprio umbigo. Começa a ajudar os vizinhos, a dar importância a outras coisas, para além do luxo, do divertimento e da diversão, e a agir em conformidade com essa nova maneira de olhar para a vida, passa a ser solidário, empático e a incomodar-se apenas com questões realmente importantes e graves. Torna-se uma pessoa melhor e assim melhora as pessoas à volta dele.
Que nunca falte uma Tormes ao futebol.
Eça de Queiroz: “E concluí que padecera de uma longa sezão, sezão de carne, sezão de imaginação, apanhada num charco de Paris — nesses charcos que se formam com águas mortas, os limos, os lixos, os tortulhos e os vermes duma Civilização que apodrece”.