Não há qualquer mal em ter um sonho, mesmo que ele seja tornar um país com nenhuma tradição com a bola nos pés numa potência mundial no futebol. O que, eventualmente, está mal é o que se faz para tornar esse sonho em realidade, os passos que se dão, os caminhos definidos, a planificação, os objetivos a concretizar para lá chegar.
Aparentemente, a China tem muitas das condições ideais para aspirar a algo tão grandioso quanto difícil e improvável. Dinheiro, suporte governamental, boas infraestruturas. Não tem um passado rico, histórico e cultural na modalidade, ao ponto de moldar consciências, ideias, comportamentos logo à partida – nesse aspeto, é um livro em branco, o que, muitas vezes, pode ser uma vantagem – e é gigante, logo tem muitas pessoas para jogar futebol. Só que, dez anos depois de Xi Jinping ter anunciado a ambição de ganhar um Campeonato do Mundo, o futebol chinês atravessa uma crise gravíssima, a vários níveis, não só financeiro.
Tenho cada vez mais claro que 99% das crises que sucedem no futebol (desportivas e financeiras) são da responsabilidade de quem gere e toma decisões de fundo. E esta, na imensidão chinesa, não é exceção. São os dirigentes, os gestores e diretores que traçam o rumo de clubes e organizações, seja ele bom ou mau. Aquilo que pensam, aquilo que idealizam ou como veem o jogo vai depois traduzir-se nas coisas que fazem, no que defendem e no que alimentam. No caso do futebol chinês, foi ficando cada vez mais claro que não pensavam bem. Por isso, também não podiam decidir bem.
É importante dizer que todos os clubes do topo da pirâmide do futebol chinês tinham ligações a (grandes) empresas, ou seja, estavam sob a orientação de quem devia saber como estar nos negócios, como fazê-los crescer, como torná-los sustentáveis e capazes de garantir resultados satisfatórios, dentro e fora do campo. Isso não aconteceu e essa é a primeira lição: ter uma abordagem empresarial do futebol e vê-lo como um negócio, está bem, mas nem todas as visões empresarias são boas. Afinal, são muitas mais as empresas que têm dificuldades e que acabam por fechar do que aquelas que crescem e são bem-sucedidas. Ter visão empresarial, algo que está muito na moda atualmente e é visto como uma exigência a iniciar e consolidar, não é tudo.
Tal como no resto do Mundo, também o futebol chinês tem vindo a viver acima das suas possibilidades. O que isto significa é que se sustenta e se fia em dinheiro que não é dele, nem sequer gerado por ele. Outro grande problema que conduziu à atual situação é que na maioria das vezes investe sem procurar retorno (financeiro) nesse investimento. Um caso sintomático: de acordo com dados do site ‘transfermarkt’, desde a época 2010/11, o saldo entre o que os clubes chineses pagaram e aquilo que receberam em transferência é negativo em cerca de 1392 milhões de euros. Já para não falar nos salários que jogadores e treinadores estrangeiros auferem. Mesmo assim, apesar de tudo apontar para o contrário, os clubes chineses insistiram nesta estratégia durante 10 anos!
Por outro lado, atrair só pelo dinheiro tem um problema inerente e muito relevante quando o objetivo é criar valor e construir alguma coisa valiosa, sustentável e vencedora. Quem vai para lá (como os grandes jogadores e treinadores do futebol europeu), só o faz devido às contrapartidas financeiras e não pelo projeto, pela ideia (se houver) por detrás do investimento, pela vontade de realmente contribuir para alguma coisa mais importante, mais emocionante e mais poderosa do que a conta bancária. É fulcral ter pessoas que se liguem emocionalmente ao processo, que se identifiquem com o que se faz e se quer construir.
Acho que é justo concluir que o dinheiro, que podia ser um aliado importante, acabou por ser uma desvantagem e um travão ao desenvolvimento do futebol chinês. Porque tinham muito, as pessoas e os clubes (como ainda acontece muitas vezes, em muitos outros países) foram levadas a pensar que isso chegaria, negligenciando muitos outros fatores que são fundamentais pensar, trabalhar e melhorar. Não me canso de dizer: ter muito dinheiro sem um plano, sem uma visão, sem um projeto é ser frágil e torna-se insustentável; pelo contrário, ter um plano, uma visão e um projeto, mesmo com pouco dinheiro, é ser antifrágil e caminhar para sustentabilidade.
O futebol chinês nunca foi antifrágil porque não deu a devida importância em como usar o muito dinheiro de que dispunha em coisas verdadeiramente diferenciadoras, determinantes, imunes ao tempo e às pessoas que chegam e vão: são essas coisas que merecem o maior investimento porque são elas que nunca vão embora e permanecem para sempre, independentemente das mudanças que possam acontecer e dos imprevistos que surjam.
O muito dinheiro acabou, portanto, por ser um problema para os planos ambiciosos de Xi Jinping e para os clubes. Porque ele toldou a visão, significou facilidades a mais, resultou em contratações mediáticas, vistas como um sinal de força que, afinal, nunca existiu. Nem podia. Ter dinheiro não é o importante; o mais importante é usá-lo bem, ainda que seja pouco.
Farto-me de insistir na importância de pensar no médio e no longo-prazo, porque acredito que ter uma visão alargada, um objetivo definido, a ambição de fazer algo grande e que demora tempo a construir é decisivo para os clubes serem bem geridos e saudáveis, e terem margem de crescimento, tão importante para manter a ilusão, a fome e procurar sempre formas de crescer e melhorar. Mas isso, paradoxalmente, não invalida que haja objetivos de curto-prazo. Mais: eles (defini-los e concretizá-los) são decisivos para que a tal grande meta seja alcançada. A China falhou também aqui, já que só olhou para o longo-prazo – ser uma potência mundial – e não deu a importância devida aos pequenos, mas indispensáveis, passos para lá chegar.
O futebol chinês – clubes e dirigentes, acima de tudo – passou dez anos assim, neste contexto insustentável, e nunca parou para pensar, refletir, tirar conclusões, fazer ajustes e mudar opiniões. Ninguém suficientemente forte para o mudar foi capaz de ver e prever que o caminho estava condenado a um desfecho desolador e desmoralizador, que a Covid-19 só veio precipitar. E esta é outra ilação importante: é decisivo analisar constantemente o que se faz e o que resulta dessas ações porque é isso que permite corrigir erros (que vão sempre existir), melhorar o que ainda não se faz tão bem e manter o que está a ter consequências transformadoras pela positiva.
Quase 1400 milhões de euros depois (no mínimo), o futebol chinês não é muito melhor do era há 10 anos, a seleção chinesa mantém os mesmos resultados modestos e a qualidade média dos jogadores chineses não conheceu qualquer evolução visível. Se o plano é tornar a seleção numa potência mundial, então os jogadores chineses têm que evoluir e os clubes têm que ajudar nesse processo e criar condições para tal. A China perdeu dez anos e dez anos dão para muita coisa, sempre e apenas se bem aproveitados e bem enquadrados nas decisões certas, fruto de reflexões constantes e de comportamentos adequados.