Claro que saber passar bem a bola é importante, que ser rápido é uma vantagem, que ter boa capacidade física ajuda, e que, quando a comparação é por estes parâmetros todas estas qualidades ajudam a garantir resultados. Mas até que ponto são assim tão decisivas? E será isso, o passar bem ou o ter muita velocidade, o mais determinante para alguém ter uma carreira de sucesso no futebol? Mais: são estas as qualidades que devem definir a escolha de jogadores, colaboradores, etc? Até que ponto aquilo que se vê – a técnica, o físico – é relevante?
O facto de muitos jogadores talentosos, no sentido mais primário e preguiçoso do termo, ficarem para trás e não atingirem patamares altos, ao contrário de outros menos habilidosos (digamos assim), que fazem carreiras relevantes, merece uma atenção muito mais profunda do que aquela que existe atualmente. Ainda se olha demasiado para o futebolista no seu sentido mais básico, muitas vezes como um produto definitivo, sem altos e baixos, sem um depois, mas também – e isso não deixa de ser relevante – sem um antes (porque tem que haver um crescimento ou não, certo?) e obstáculos que terá que ultrapassar para atingir determinados patamares: o presente (curto-prazo) ainda prevalece sobre o futuro (médio-prazo).
O que diferencia a maioria dos jogadores, o que faz uns melhores do que outros, é tudo aquilo que vem associado à personalidade, personalidade essa que o fará evoluir, jogar melhor ou pior. É o conjunto de características e qualidades mentais que uns têm e outros não, que uns cultivam e outros negligenciam. Que uns aprendem e outros não têm quem os ajude a aprender. O que faz a diferença é a capacidade e a vontade de melhorar e potenciar aquilo que se tem, é o inconformismo. E isso aprende-se. É importante ter essa noção.
Ser o mais tecnicista, o mais rápido, o maior, o mais forte ou o mais esperto é pouco, cada vez mais, e está longe de garantir o que quer que seja. Pelo menos, mais longe quando comparado com alguém que pode ser mais limitado nessas características motoras, mas que tem uma capacidade mental, intelectual e, consequentemente, comportamental acima da média, que lhe abrirá mais portas, lhe dará mais oportunidades e o tornará mais capaz, mais interessante e mais inacabado, logo mais treinável.
Este cenário já é uma realidade atual, mas tende a aprofundar-se. Como há mais conhecimento, mais treinadores e melhores condições, a lógica quase que obriga ao aumento de mais e melhores jogadores, pelo que aspirar a uma carreira no alto-nível ficará cada vez mais difícil se essa ambição for apenas sustentada nas qualidades visíveis, naquilo que é facilmente apreendido e analisado. Contudo, é o que não se vê a olho nu que merece cada vez mais atenção.
O jogador será aquilo que a pessoa que ele é deixar que ele seja. E o que ele vai ser daqui a um, dois, três ou cinco anos não é ditado por aquilo que mostra hoje, técnica e fisicamente, mas pelos princípios e pelos valores que promove, que defende e que vai aprendendo, e pelas características mentais que possui e que farão dele melhor ou pior no futuro.
E isto é problemático, na medida em que torna tudo mais complexo e imprevisível. Era muito mais fácil e existiria uma margem de erro muito menor se o futuro fosse só a consequência do que um jogador consegue executar e fazer com os pés, as pernas, a cabeça e a bola. Por outro lado, também seria bem menos interessante.
O facto de a personalidade ser tão decisiva levanta dois problemas logo à partida: como se avalia? E como se pode trabalhá-la?
A ajuda da neuroplasticidade
É imperial ter a noção de que a personalidade (ou a individualidade), trabalha-se. A personalidade é maleável e ajustável, está em constante (de)formação, constrói-se com as companhias, com as vivências, com as realidades de cada um, os hábitos e as conversas. Pode evoluir favoravelmente, e também pode piorar, conforme os estímulos recebidos.
Dar à personalidade relevância num processo de recrutamento, por exemplo, já não deve ser um mero pormenor. Mas também começa a ser uma urgência trabalhá-la, cultivá-la e alimentá-la, ininterruptamente. Esse poder mental deve ser visto como um processo sem fim e a necessitar de estimulação constante. Pode-se aprender a ser mais paciente, mais resiliente, mais concentrado, mais persistente, mais trabalhador, mais organizado, mais disciplinado, mais ambicioso, mais tranquilo, mais interessado. E também se pode deixar de ser tudo isso. A neuroplasticidade (“capacidade do sistema nervoso de mudar, adaptar-se e moldar-se a nível estrutural e funcional ao longo do desenvolvimento neuronal e quando sujeito a novas experiências”) assim o diz, e isso é algo que não pode ser ignorado.
A personalidade é diferenciadora, para o bem e para o mal. A personalidade aproveita, sobrevaloriza até, o potencial bruto se for a adequada ou impede o potencial de se expressar e mata o crescimento, se for errada. É aquilo que pensa e que faz que pode transformar um jogador mediano num bom jogador, um bom jogador num grande jogador e um grande jogador num craque. A fortaleza dos padrões psicológicos faz (e fará) o futebolista parecer melhor do que é; a fragilidade, pelo contrário, torna-o pior.
Cultivar a personalidade também é importante porque nos relacionamos constantemente, estamos inseridos em sociedades e grupos de trabalho, porque precisamos dos outros para chegarmos onde queremos. É a personalidade que vai dizer se alguém encaixa numa equipa, se se ajusta ao projeto e à ideia coletiva, se promove relações saudáveis, se reage bem às adversidades e aos sucessos, se ajuda e se respeita os outros, se tem a melhor atitude perante as circunstâncias, se tem capacidade de liderança (nem que seja para se liderar a ele mesmo). A personalidade é determinante para tudo.
Tudo isto realça a importância de se olhar para o jogador com o mesmo cuidado que se olha para a pessoa. Ler livros, encontrar referências/mentores, promover determinados comportamentos, exposição a contextos diversos e adversos, vivências em realidades que exigem adaptação e diversificar interesses que tornem a pessoa mais completa e interessante podem ser estratégias eficazes para o desenvolvimento da personalidade.
Não é muito difícil perceber se um jogador é bom, se tem qualidade técnica, se é rápido, se dribla bem ou se corre muito. Mas é muito complicado saber se tem o que é preciso para chegar longe. Porque o que torna isso possível já pertence à parte pessoal, diz respeito ao indivíduo e depende da personalidade de cada um. Está na hora de levar a personalidade (a construção do eu) tão a sério como a capacidade de passe, o remate ou a velocidade.